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Foto: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã |
Do website Brasil de Fato
em 28 de janeiro de 2020
A
própria ideia de homenagem ao centenário de João Cabral de Melo Neto pareceria
estranha ao escritor ou, pelo menos, à imagem construída em torno da figura de
um dos grandes ícones da cultura brasileira. Avesso à fama e ao culto à
personalidade, João Cabral dizia que preferia não ser popular e que o fato de
não precisar viver da escrita o permitia dar pouca atenção ao assunto.
Nascido
no Recife, em 1920, ele publicou seu primeiro livro, Pedra do Sono em 1942. Se mudou para o Rio de
Janeiro, aos 22 anos e aos 25 anos ingressou no serviço diplomático.
Na época lançou a obra O engenheiro. Ao
longo da carreira no Itamaraty, passou por países como Senegal, Portugal,
Espanha, Inglaterra e Suíça, mas nunca deixou de escrever.
Em
1950, João Cabral publicou O Cão Sem Plumas,
obra que viria a ser considerada a consolidação de um estilo criterioso,
objetivo e rigoroso, completamente avesso a inspirações subjetivas,
sentimentais e oníricas. Essas características o levaram ainda mais a um
caminho de crítica ao culto à individualidade. Em entrevista ao jornalista e
escritor Geneton Moraes Neto, o poeta é taxativo quanto a essa postura:
“Não
gosto de carta. (…) Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o
tempo todo.”
Não
sem motivo, é de Cão sem Plumas que saem alguns
dos poemas que hoje inspiram artistas muito conectados a uma linguagem
extremamente atual das artes. Em 2017, a coreografa Deborah Colker criou um
espetáculo que leva o mesmo nome do livro e de um dos poemas da obra. A banda
Cordel do Fogo Encantado incluiu no disco O Palhaço
do Circo sem Futuro versos do poema Os Três Mal Amados, que também está no livro. A
declamação visceral do vocalista Lirinha ficou famosa durante a turnê da
banda e era gritada em coro pelo público sempre emocionado.
“O
amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão
de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor comeu
meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos
os papéis onde eu escrevera meu nome.
O
amor comeu minhas roupas, meus lenços,
minhas camisas. O amor comeu metros e
metros
de gravatas. O amor comeu a medida de meus
ternos, o número de meus
sapatos, o tamanho de
meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu
peso, a cor de
meus olhos e de meus cabelos
(…)
O
amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia
e minha noite. Meu inverno e meu
verão. Comeu
meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da
morte.”
O
Meu nome é Severino
Se Cão sem Plumas deu início à linguagem que
marcou a identidade literária objetiva de João Cabral, foi anos
depois, com Morte e Vida Severina (1955),
que o autor experimentou sua maior popularidade. Com o subtítulo Auto de Natal Pernambucano, o texto conta a trajetória
de um imigrante que foge da seca no sertão e busca a sobrevivência na
capital Recife.