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domingo, 8 de setembro de 2024

Um Leopardo Prata



Ecriture No. 050520 - (2005) - Park Seo-Bo


Não sei disso o alfabeto, o caminho, a sinalização clara que diga para onde. Não sei disso mais que o estalo no ar, a presença viril, como um caju no cajueiro ou um lagarto sobre uma rocha. Não sei disso a reentrância do desejo, a intimidade molhada das coisas que, só íntimas, assim o são. Não sei disso de tomarmos café juntos e partilharmos as derrotas ou as conquistas. Disso sei como sei do andar da mulher na rua, pisando com sua elegância o olhar de quem estanca o passo e observa, sem revelar o coração ou o passado. Disso sei como quem sabe de um leopardo prata no escuro da noite, correndo, sozinho, total.



|Autor: Webston Moura|

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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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domingo, 4 de agosto de 2024

Os Rumores



The rumors (1939) - Paul Klee


Os rumores hão de acontecer, obviamente e sempre. Como as águas que se renovam, ciclo a ciclo, como se vê. Os rumores de que o tempo passa e o calor aumenta, à medida que envelhecemos nesta varanda. Os rumores estão nas ruas e na TV. São veementes em bocas dissimuladas. Erguem verdades de papel. E derrubam fatos sob o sol. Desconfio de que a verdade, ela mesma, está bastante empoeirada, debaixo de todo o entulho de nossas vidas vazias e do insano desejo de poder.

Já é segunda-feira em Bangladesh. E o relógio marca 04: 47.


|Autor: Webston Moura|

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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Araibu e Só Um Transeunte.
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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

CIGANO


Fora de controle:
o sangue,
o plano,
o ônibus que agora passa,
veloz,
a moça,
dentro,
lendo
um livro
(janela a janela,
a vejo,
passando,
perdida de mim).

Fora de controle:
a chuva,
o raio,
o trovão,
a lama escorrendo,
como de sempre,
como se fosse a primeira vez.
Vê lá a criança se banhando na bica!

Fora de controle:
sair por aí,
sumir no mato,
ouvir a sabiá
e o vento sobre as folhas.
Entre liberdades,
ser cigano,
comprar e vender
cavalos,
tomar bebida de origem forte,
dançar com uma mulher de nome espanhol
e acordar em Ostrava, na praça principal.


│Autor: Webston Moura│

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

O RIO QUANDO O SABÍAMOS


Não vá para o fundo, dizia a mãe.
O rio, que passava dentro da cidade,
nem estava tão cheio, pois era o tempo de estio.
Mas, continha água suficiente para nós,
pequenos aventureiros de cada manhã.

Íamos, mas não no perigo.
Exceto uns, por vocação de desobedecer,
atreviam-se e subiam em árvores à beira do rio,
na parte em que havia poços, diziam, água escura, funda.
Pulavam e faziam algazarra, mergulhavam, eram ágeis.
De longe, nós, os mais quietos, não os invejamos.
Gastávamos o tempo no fazer-nada que a água dá,
além de buscarmos, aqui e ali, piabas e outros bichinhos.

Do outro lado do rio, uma comunidade,
gente ainda mais pobre, sem luz elétrica,
sem água encanada, sem filtros de barro,
enfim, com muitas ausências,
mas sem graves tristezas.
Sorriam para nós enquanto passavam.

Sempre olhávamos o sentido da corrente,
para onde o rio se findava nalguma curva.
Que outros povos encontrava?
Que outras histórias percorria?

Disso tudo,
o rio interno que carregamos espelhado naquele,
águas que se foram e que voltaram
quando não estávamos mais lá.

Hoje,
perdendo tempo enquanto podem,
há crianças no rio,
naquele
ou no que dele restou?


│Autor: Webston Moura│

PEQUENA HISTÓRIA PARA ESPÍRITOS INFANTIS


Fomos buscar um não-sei-quê no mato, atrás da casa.
Já era noite, cedo ainda, mas noite,
o que, para crianças que éramos, irmãos pequenos,
havia de ter algum mistério.
Nosso pai nos levou, meio que subitamente,
como alguém que sabe, por experiência,
que crianças assuntam uma qualquer aventura,
ainda mais se é pela mão do pai,
num tempo onde pai era tudo.

Nada vimos, além da noite,
a escuridão, ela mesma o mistério:
paisagem ora parda, ora cinza;
pássaros no esconso, grilos e estrelas.

Concluímos, por uma razão de criança,
de o inusitado ter sido o pai
e seus comandos a nós,
uma fila indiana seguindo uma trilha,
acreditando desbravar algum eldorado
ou expulsar seres imaginados só por nossos extremos.
Fizemos, contra a rotina,
nossa pequena história de um pedaço de noite
que se vai perdido, exceto por este relato.


│Autor: Webston Moura│

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O Lado Esquecido da Cidade







Toda cidade tem sua parte baixa, periférica.
É onde os pobres teimosamente vivem.
A chuva que molha os altos, a fazer serenata nas varandas,
é a mesma que, nas partes baixas, desassossega.
Desfazer casas e barracos, fazer rolar ribanceiras,
sua chegada tem dessas tarefas de ofensa.
Ainda assim, por uma mágica razão de sentir,
uma mão sensível recolhe pingos e os bebe misturados a um sorriso.


│Prosa Poética da Série "Por Ocasião da Chuva" – Autor: Webston Moura│



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Webston Moura
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quarta-feira, 15 de junho de 2016

ASSOBIAR UMA CANÇÃO PARA UM DIA LEVANTADO



A luz, excelsa em seu tranquilo passeio, deita ao dorso das folhas das caras-de-cavalo o que a meus olhos incidirá num verde-vivo. Ainda que a vida-de-todo-dia esteja maldita (nos noticiários, nas esquinas, nos lares), não posso adiar os pequenos milagres que me comovem, como esta luz e este verde, sumo e findável instante de passagem em que, vivo de uma vida plena, sinto. E, pelo visto, sentir tem sido um obstáculo para os que se alimentam de pressa e notícias, não para mim. Digo-te, amigo, que há um pátio num elevado de um prédio deserto de uma cidade sem nome. E, nele, um piano branco e alguém que toca. Digo-te, amigo, que há, em redor do pátio, vasos de barro, todos úmidos de frescor e de caras de caras-de-cavalo. A um canto, uma jovem de olhos cor de avelã cuida de um aquário e guarda sigilosos saberes das artes de amar. Ao erguer ao céu a suavidade de seu rosto, vê abrir-se em voo (de dentro de uma estrela) um pássaro. No ínterim deste conforme, sou todos os homens que carrego. E eles, súbitos e tranquilos, não sofrem, pois que sonham neste ressurgir, sem mácula. Renascem para um dia levantado a seu patamar de origem.



[Assobiava algo.
A princípio não compreendi.
Em seguida,
como uma cascata suave,
soou,
límpida,
a canção.
Dizia de uma aldeia
e de uma criança desaparecida.
Dizia de uma mãe em busca de sinais.
A isto dei de pensar sermos nós
aquela criança
vagando nos escuros da realidade
em busca de pão e do caminho de volta.
Por isso, e como não?, os sonhos.]





│Autor: Webston Moura
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quinta-feira, 2 de junho de 2016

NA MOENDA DOS DIAS

Entre ossos, alguma graça.



Um ônibus atravessa meus olhos, como aos do cão cor de naufrágio, que também segue. A rua, interditada de perigos, já não me abraça senão de aflição e pressa. Quem vem lá? Um cidadão ou um desencontro? Uma senhora, lenta, carrega sacolas (medos, fardos, noites mal dormidas, alguma alegria) e, a custo, consegue distinguir o sinal ─ certo? selado? irrisório? Uma criança e sua mãe passam na outra calçada, e tudo é tão veloz na máquina de ir e vir, que paro, mas apenas na míngua de um lapso. O tempo passa, o tempo não passa. O relógio, meu pulso, meu suor, minha calça de quinta-feira, um cisco no olho, uma guimba, o poste, muros. Em redor, absolutamente, a cidade, sempre e incansável. Moro no mais tarde, depois das onze. O jantar: requentá-lo; comê-lo. Na TV, um homem frágil explica taxas e gráficos, coisas que não entendo. No silêncio, antes de dormir, sei que todos os amanhãs já se foram e que tudo é tão somente o cumprimento de uma rotina. Desligo a TV e me apago. Sono adentro, escutas noutro radar, ouço a moça estrangeira de um filme já antigo. Na névoa de um sonho, entrevejo seu olhar: Lauren Bacall, Uma Aventura na Martinica.



[Na esquina, um banquinho na calçada.
Todos já sabem: ele não é muito de dormir.
Fuma um pouco, enquanto a noite cavalga.
Toma café, escuta o rádio, acompanha os que vão e vem.
Ninguém lhe aborrece, nem os bêbados.
Não é triste, não se queixa, não tem ambições, nunca teve.
Em vez de alegre, leve, que foi o que de melhor aprendeu.
Telegrafa-me um olhar; gesticula, suave, com a mão. Um amigo.
Irmanamo-nos no anonimato dos que
gastam suas vidas comendo jantares requentados
e sonhando com Lauren Bacall.
Veio de longe e sempre de longe será,
pois sua força é um tipo de resistência
que se adapta a diferentes geografias.
Aos sábados, mas não só, toca seu clarinete.
De cá, cantando baixo, acompanho O mundo é um moinho.]



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NOTAS:
1. Lauren Bacall, atriz norte-americana reconhecida por seu talento, extensa obra e inevitável beleza.
2. O mundo é um moinho, música de Cartola que você escuta aqui: https://youtu.be/.

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│Autor: Webston Moura
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