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quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

CIGANO


Fora de controle:
o sangue,
o plano,
o ônibus que agora passa,
veloz,
a moça,
dentro,
lendo
um livro
(janela a janela,
a vejo,
passando,
perdida de mim).

Fora de controle:
a chuva,
o raio,
o trovão,
a lama escorrendo,
como de sempre,
como se fosse a primeira vez.
Vê lá a criança se banhando na bica!

Fora de controle:
sair por aí,
sumir no mato,
ouvir a sabiá
e o vento sobre as folhas.
Entre liberdades,
ser cigano,
comprar e vender
cavalos,
tomar bebida de origem forte,
dançar com uma mulher de nome espanhol
e acordar em Ostrava, na praça principal.


│Autor: Webston Moura│

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

O RIO QUANDO O SABÍAMOS


Não vá para o fundo, dizia a mãe.
O rio, que passava dentro da cidade,
nem estava tão cheio, pois era o tempo de estio.
Mas, continha água suficiente para nós,
pequenos aventureiros de cada manhã.

Íamos, mas não no perigo.
Exceto uns, por vocação de desobedecer,
atreviam-se e subiam em árvores à beira do rio,
na parte em que havia poços, diziam, água escura, funda.
Pulavam e faziam algazarra, mergulhavam, eram ágeis.
De longe, nós, os mais quietos, não os invejamos.
Gastávamos o tempo no fazer-nada que a água dá,
além de buscarmos, aqui e ali, piabas e outros bichinhos.

Do outro lado do rio, uma comunidade,
gente ainda mais pobre, sem luz elétrica,
sem água encanada, sem filtros de barro,
enfim, com muitas ausências,
mas sem graves tristezas.
Sorriam para nós enquanto passavam.

Sempre olhávamos o sentido da corrente,
para onde o rio se findava nalguma curva.
Que outros povos encontrava?
Que outras histórias percorria?

Disso tudo,
o rio interno que carregamos espelhado naquele,
águas que se foram e que voltaram
quando não estávamos mais lá.

Hoje,
perdendo tempo enquanto podem,
há crianças no rio,
naquele
ou no que dele restou?


│Autor: Webston Moura│

PEQUENA HISTÓRIA PARA ESPÍRITOS INFANTIS


Fomos buscar um não-sei-quê no mato, atrás da casa.
Já era noite, cedo ainda, mas noite,
o que, para crianças que éramos, irmãos pequenos,
havia de ter algum mistério.
Nosso pai nos levou, meio que subitamente,
como alguém que sabe, por experiência,
que crianças assuntam uma qualquer aventura,
ainda mais se é pela mão do pai,
num tempo onde pai era tudo.

Nada vimos, além da noite,
a escuridão, ela mesma o mistério:
paisagem ora parda, ora cinza;
pássaros no esconso, grilos e estrelas.

Concluímos, por uma razão de criança,
de o inusitado ter sido o pai
e seus comandos a nós,
uma fila indiana seguindo uma trilha,
acreditando desbravar algum eldorado
ou expulsar seres imaginados só por nossos extremos.
Fizemos, contra a rotina,
nossa pequena história de um pedaço de noite
que se vai perdido, exceto por este relato.


│Autor: Webston Moura│

quarta-feira, 15 de junho de 2016

ASSOBIAR UMA CANÇÃO PARA UM DIA LEVANTADO



A luz, excelsa em seu tranquilo passeio, deita ao dorso das folhas das caras-de-cavalo o que a meus olhos incidirá num verde-vivo. Ainda que a vida-de-todo-dia esteja maldita (nos noticiários, nas esquinas, nos lares), não posso adiar os pequenos milagres que me comovem, como esta luz e este verde, sumo e findável instante de passagem em que, vivo de uma vida plena, sinto. E, pelo visto, sentir tem sido um obstáculo para os que se alimentam de pressa e notícias, não para mim. Digo-te, amigo, que há um pátio num elevado de um prédio deserto de uma cidade sem nome. E, nele, um piano branco e alguém que toca. Digo-te, amigo, que há, em redor do pátio, vasos de barro, todos úmidos de frescor e de caras de caras-de-cavalo. A um canto, uma jovem de olhos cor de avelã cuida de um aquário e guarda sigilosos saberes das artes de amar. Ao erguer ao céu a suavidade de seu rosto, vê abrir-se em voo (de dentro de uma estrela) um pássaro. No ínterim deste conforme, sou todos os homens que carrego. E eles, súbitos e tranquilos, não sofrem, pois que sonham neste ressurgir, sem mácula. Renascem para um dia levantado a seu patamar de origem.



[Assobiava algo.
A princípio não compreendi.
Em seguida,
como uma cascata suave,
soou,
límpida,
a canção.
Dizia de uma aldeia
e de uma criança desaparecida.
Dizia de uma mãe em busca de sinais.
A isto dei de pensar sermos nós
aquela criança
vagando nos escuros da realidade
em busca de pão e do caminho de volta.
Por isso, e como não?, os sonhos.]





│Autor: Webston Moura
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quinta-feira, 2 de junho de 2016

NA MOENDA DOS DIAS

Entre ossos, alguma graça.



Um ônibus atravessa meus olhos, como aos do cão cor de naufrágio, que também segue. A rua, interditada de perigos, já não me abraça senão de aflição e pressa. Quem vem lá? Um cidadão ou um desencontro? Uma senhora, lenta, carrega sacolas (medos, fardos, noites mal dormidas, alguma alegria) e, a custo, consegue distinguir o sinal ─ certo? selado? irrisório? Uma criança e sua mãe passam na outra calçada, e tudo é tão veloz na máquina de ir e vir, que paro, mas apenas na míngua de um lapso. O tempo passa, o tempo não passa. O relógio, meu pulso, meu suor, minha calça de quinta-feira, um cisco no olho, uma guimba, o poste, muros. Em redor, absolutamente, a cidade, sempre e incansável. Moro no mais tarde, depois das onze. O jantar: requentá-lo; comê-lo. Na TV, um homem frágil explica taxas e gráficos, coisas que não entendo. No silêncio, antes de dormir, sei que todos os amanhãs já se foram e que tudo é tão somente o cumprimento de uma rotina. Desligo a TV e me apago. Sono adentro, escutas noutro radar, ouço a moça estrangeira de um filme já antigo. Na névoa de um sonho, entrevejo seu olhar: Lauren Bacall, Uma Aventura na Martinica.



[Na esquina, um banquinho na calçada.
Todos já sabem: ele não é muito de dormir.
Fuma um pouco, enquanto a noite cavalga.
Toma café, escuta o rádio, acompanha os que vão e vem.
Ninguém lhe aborrece, nem os bêbados.
Não é triste, não se queixa, não tem ambições, nunca teve.
Em vez de alegre, leve, que foi o que de melhor aprendeu.
Telegrafa-me um olhar; gesticula, suave, com a mão. Um amigo.
Irmanamo-nos no anonimato dos que
gastam suas vidas comendo jantares requentados
e sonhando com Lauren Bacall.
Veio de longe e sempre de longe será,
pois sua força é um tipo de resistência
que se adapta a diferentes geografias.
Aos sábados, mas não só, toca seu clarinete.
De cá, cantando baixo, acompanho O mundo é um moinho.]



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NOTAS:
1. Lauren Bacall, atriz norte-americana reconhecida por seu talento, extensa obra e inevitável beleza.
2. O mundo é um moinho, música de Cartola que você escuta aqui: https://youtu.be/.

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│Autor: Webston Moura
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domingo, 29 de maio de 2016

DE PASSAGEM



Eu realmente me canso de te ver repetir normas a seguir, normas a quebrar. Para construir ou demolir mundos, sou pouco. Estou de passagem, e o tempo é curto. De camisa azul-claro e calça jeans, não preciso de mais que algum era uma vez e a liberdade de caminhar por aí, sem atentar para o último round entre gregos e troianos. Não leve tão a sério o que pensa. O tempo te dirá o contrário, um jogo infinito de possibilidades, que você, talvez, não queira enxergar. Olha: na janela daquele andar, um vaso que não vai cair. É a vertigem que te deve impulsionar; não o medo de não conseguir controlar o movimento das coisas. E eu só preciso de um drink e de uma verdade que não se pronuncie como um mandamento ou um chamado para uma guerra. Você desaprendeu a pulsação de Down to the Waterline. Você desconsidera abrir as janelas. Deixou uma gramática ofendida nascer entre as nossas palavras.



[Tinha medo. E o tinha como a um tesouro.
Cuidava-o, como a uma horta se cuida.
Tinha os dedos gastos uns nos outros;
as mãos, entre si, cerradas,
fecho de aço que não se quebra.
Tinha a boca seca, as íris abrasadas
e a mais incrível saudade de uma palavra,
que poderia ser qualquer uma,
se possibilitada no bem.]





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NOTA:
1. Down to the Waterline, escute-a aqui [https://youtu.be/]

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│Autor: Webston Moura
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sábado, 21 de maio de 2016

PARA QUE FECHES OS OLHOS



Escrevia contos e os guardava. Tinha um sonho recorrente: após dois copos de vinho, dirigia um carro numa estrada deserta e no passado, 1976. No toca-fitas, ouvia: tua presença é uma gota de orvalho que o sol evapora. E a estrada não se acabava; parte por parte, as linhas do meio dividindo a pista, sequência repetida, mas não enfadonha. Lembrava, mas não sabia o porquê de chamar de lembrança a isto: Fechar os olhos. Ouvir as sibilas (descobri-las), como quem, relva sob relva, solo sob solo, desencava o canto, aquele da súmula dos olhares. O vinho, o motor discreto, a noite, ninguém na estrada, viajar, 1976. Escrevia contos. Havia um sobre uma cidade perdida, um lugar mais para a lenda que para a história. Nunca o terminava. Não era a intenção. A travessia, sim, o era. Sempre estar ali com aquela estória, pesquisar em diferentes fontes e conseguir detalhes que pudesse incorporar ao relato. No meio da madrugada, parar e ficar olhando o calhamaço de folhas preenchidas, silêncio. Da janela, a nudez que da rua se expunha. A cidade, o vazio. Gostava daquilo. Ausência e nostalgia. Duração.



[Para ler, ilha que se encontra num fechar
de olhos, selos espalhados sobre a cama,
escaninhos raros, traz à mão o trotar
de raros cavalos e, tons acima,
areias brancas de uma praia
jamais encontrada senão por secretos alfabetos.]






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NOTAS:
1. A citação "Tua presença é uma gota de orvalho que o sol evapora" trata-se do primeiro verso de "Tua Presença", composição de Maurício Duboc e Carlos Cola.
2. O mais, posto em itálico, são trechos de outros escritos do Webston Moura.
3. Em 1976, que houve?

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│Autor: Webston Moura
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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

MÃE, MULHER, TEMPO



Meu nome, esquece-o,
que já é tarde debaixo de meu xale!
E eu, de silêncio e discrição,
descreio de teu amor, piedade que é.
Sou doutro tempo e não deste,
expulsa que o sou, a cada dia,
pela pressa alheia e alheada.
Fossilizam-me numa palavra: velha.
Todavia, se posso, digo:
com sorte, estes que vicejam
hão de achegar-se até as artrites.
Aí, talvez, saberão que ainda há estrelas
que se pousam, aladas e viscerais,
nos corações de todas as idades,
o que inclui as minhas.

Autor: Webston Moura


SEUS CABELOS BRANCOS, SUA FALA - É invisível sua presença. Alongada em tempo, ainda assim o é. Esposa, mãe, avó, dona de casa, ordem numérica no pegue-e-pague das feiras e mercados, carrega seu currículo de funções e trabalhos. E não sonha desde remotos tempos. Agora, cabelos brancos, aguando plantas fincadas em vasos de barro e latas reaproveitadas, é invisível. Pelos olhos-não do mundo passa sua figura. De si, sabe de seu pouco tempo e de que a vida, zás-trás, pode, agora, ser ainda menos. Mas já se acalmou com isso. Espera sem esperar. Estende o tempo de modo simples: esquece-o, absorvida que se deixa em orações e preces, enquanto domestica o já imensamente domesticado, a rotina de afazeres de sua casa caiada em luz e memória. Os filhos, na cidade grande ou em não-sei-ondes de um país medonho. Os amigos, lembranças aos idos, distâncias aos ficados. E lhe sorriem esmolas traduzidas em sentimentos de impotência e desconhecimento, como se lhe dessem água, se sede fosse a sua necessidade. E lhe sorriem cordiais formalidades que educadamente se dão ao trabalho para com os velhos. E lhe sorriem com adeuses, que toda delicadeza lhe prestada já não lhe vê vigor, mas, em noir, um rosto indiviso na fumaça de uma estação de trens de um país fictício, o seu, mundo perdido em outroraS e calendários amarelecidos.