quarta-feira, 30 de setembro de 2015

ENQUANTO O VENTO ME RUMINA


A casa vazia, o silêncio;
tudo é exílio e exceção.
A secura com que o vento tange,
suave, salmoura e lassidão.
A fotografia a parecer mais antiga,
um rosto, um sorriso, um janeiro.
A louça, na cozinha, em degredo.
Meus passos, seus sons e solidão.



│Autor: Webston Moura
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MIRABILIA, MIRAÇÃO

Você me sorri pássaros Me diz
Bálsamos e crisântemos Me ensina
Relâmpagos Me faz sonho raiz
Plantada em nuvem Sândalo neblina
Me transpira poemas tal Hafiz
Me esculpe a face em luz ou vento Assina
Na minh’alma com tinta d’água giz
Assobia azuis sombras opalinas
Me leva a passear em seus quadris
Me perfumam seus olhos Me calcina
Sua presença seu ventre-motriz
Você me voceíza predestina
Me comunga me francisca de assis
Me sana milagra desassassina



│Autor: O Poeta de Meia-Tigela

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# Poema transcrito de um cartão postal, gentileza d’O Poeta de Meia-Tigela (Alves de Aquino).

# O Poeta de Meia-Tigela está na segunda edição de Kaya [revista de atitudes literárias]:
● A Noiva [O Poeta de Meia-Tigela]
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O POETASSILGO



O poeta, o que ele é? Uma andorinha.
Parente da cigarra,  descendente
da flauta, do trovão, da fontainha.
O poeta é o quê? Som virado gente.

O poeta? Invenção da Carochinha.
História de Trancoso, pretendente
com Dom Ratão à mão da Baratinha.

O poeta é quê? Cérebro que sente.
Sente dó do diabo e se avizinha
do solitário asceta da montanha.
Convida o Barba Azul pruma festinha.

Poeta? Abraça o cacto, acarinha
Baiacu, porco-espinho, ouriço, amanha-os.
O poeta, o que ele é? Uma avezinha.


│Autor: O Poeta de Meia-Tigela

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# Poema transcrito de um cartão postal, gentileza d’O Poeta de Meia-Tigela (Alves de Aquino).
Blog do autor: http://opoetademeiatigela.blogspot.com.br/

domingo, 27 de setembro de 2015

Memória


Para Inês



Aprende o infinito, recupera
a distraída bússola da alma
pouco a pouco sonâmbula, o exausto
sabor da tua vida enquanto é mais
que um recado de lume no teu corpo,
que a promessa da febre no teu sangue,
e aprende sobretudo a suspender
o tempo quando abraça quem morreu
só pra ressuscitar dentro de ti
ao cumprir a memória incandescente
dos dias que o amor transforma em meses,
dos meses que o amor transforma em anos,
dos anos que o amor rasga e entrega
ao rosto azul do céu e destes versos.

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# Poema constante de "Poemas Escolhidos", de Fernando Pinto do Amaral.

A rã da fachada



“una de las cuatro luces que alumbran al mundo”
Papa Alexandre IV, em 1254,
sobre a Universidade de Salamanca


Situada às margens do rio Tormes, a espanhola Salamanca é cognominada de “pequena Roma” pelo rico patrimônio histórico que ostenta. São emblemáticos os seus edifícios, monumentos, praças e igrejas. A Universidade, com quase oitocentos anos de existência, também figura nesse rol, com galhardia.

Em 1218, o rei Afonso IX fundou a Universidade de Salamanca. Poucos anos depois, o Papa Alexandre IV declarava que a instituição era uma das quatro luzes que iluminavam o mundo, junto com as universidades de Oxford, Paris e Bolonha.

Há registro que, em 1584, por exemplo, nada menos que 6.778 alunos assistiam às disciplinas ministradas em suas salas. Todos almejando conquistar seus títulos de licenciados ou doutores. E eram estudantes de todas as partes do mundo, demonstrando que a influência de Salamanca já não se limitava ao continente europeu. Comumente vemos citados nomes ilustres que passaram por seus bancos.

É plausível que nos seus longevos corredores, ou nas ruas da cidade, escutemos histórias que o tempo trata em transformá-las em lendas, fábulas, folclore ou, por vezes, terminam incorporadas à cultura organizacional. Conto-lhes duas.

Naquele afã dos primeiros dias em conhecer a urbe e seus encantos, todos somos levados a contemplar a fachada do prédio antigo da universidade. É cena comum, a qualquer hora do dia, encontrarmos um grupo de turistas, ou de estudantes, admirando o belo frontispício Plateresco (estilo típico do Renascimento espanhol), cuja edificação foi concluída no início do século XVI.

Não sendo especialista, fica até difícil traduzir em plenitude a beleza da obra. Mas, mesmo com visão leiga, arrisco passar-lhes algumas poucas informações. Bem, imaginem a frontaria de um edifício, com altura compatível a mais ou menos cinco andares, como se fora um tapiz de pedra, dividido por colunas e frisos e com uma enorme quantidade de detalhes esculpidos. Pois é a impressão que temos ao olhá-la. Existe até uma recomendação de que devemos ficar posicionados há uns seis metros de distância, para melhor visualização.

Além do alumbramento com a formosura arquitetônica, a conversa predominante quando das visitas à ‘fachada’ é a localização da rã. Isso mesmo. Existe certa disputa para ver quem localiza esta, em meio a tantos quiméricos objetos que ornamentam aquela. A explicação para a presença da lendária rã remete a questões simbólicas e religiosas da época da construção do sodalício, mas não iremos adentrar a tal alçada, para não tornar-se enfadonho.

Porém, a fábula gira em torno das ‘alternativas’ do que ocorrerá com quem encontre, ou não, a rã: uns dizem que o estudante que não encontrá-la, logo na primeira visita, não se dará bem no curso. Outros brincam com os turistas, dizendo que se os mesmos não lograrem êxito na busca, não terão sorte na viagem.

Outra interessante história envolvendo a Universidade, de cunho menos mítico, diz respeito ao ‘Victor’ (do latim victor, vencedor) — símbolo de vitória —, que é facultado ao estudante pintá-lo, junto a seu nome, em uma das paredes da instituição, ao concluir o doutoramento.

Atualmente a pintura é feita com requinte, técnica e, claro, tinta apropriada. Mas nem sempre foi assim. Nos primórdios, era costume que o concluinte brindasse sua conquista com uma festa, sacrificando um touro para a referida comemoração; e o sangue (misturado a alguma substância, creio) desse animal servia para ele e seus companheiros escreverem o ‘Victor’.

Ainda hoje é possível, em algumas das seculares paredes, observarmos decifráveis manchas das pinturas de antanho, que teimam em resistir ao tempo. Contemplando, tanto os símbolos antigos como os novos, particularmente, é inevitável não lembrar-me do grande Machado de Assis – Bruxo do Cosme Velho –: “Esta a glória que fica, eleva, honra e consola”.

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# Crônica constante de "Cartas de Salamanca" (clique "aqui"), de David de Medeiros Leite.

Outro instante não houve


Outro instante não houve em tua vida
fora do longo e lúcido momento
em que regavas as palavras vindas
do lago azul dos vales araucanos.

Um instante não houve, camarada
em que afastasses a tua voz
do sussurro da floresta antiga
e do ruído das estações de esperança
sempre despedidas. E perseguidas sempre.

Providencial operário e artífice:
forjaste o sino vibrante que dobra
sobre os tetos da pobreza
e retine na alma americana
em toques infindáveis.

Poeta,
acepta nuestra copa,
maduro vino de la tierra amanhecida.
Campanas solidarias
en las minas, em la pampa, em los cerros,
em todas partes repercuten las palavras
antiguas y nuevas de flor ya sangre.

Rosas blancas alzadas al cielo
una bandada de palomas
Saluda el Tiempo Nuevo.


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# Poema constante de "Neruda: canto memorial" (Imprensa Universitária, 2004). Website do autor: http://www.lucianomaia-memoriadasaguas.com/


│Autor: Luciano Maia

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

DEUS E OUTROS QUARENTA PROBLEMAS (Excerto)




Gênio, não tenho.
Me empenho.
Essas palavras me soam
como “Os morcegos não são aves
mas
voam."


Como evitar, porém, que o poema seja um rio não mapeado, que a vereda cruze... e saia seca do outro lado? Como fazer com que, criado, ele cause a sensação, anterior, de que faz falta, como ao Corcovado faz ─ no Rio Antigo ─ o Redentor? Como criá-lo com a naturalidade com que laranjeiras dão laranjas, e os jardins, em seus delírios, cravos, orquídeas, cachos de lírios, a força da natureza irrompendo, sem planos, com o mesmo ímpeto da Torre do Diabo, ao vir do chão, gigantesca, nos Estados Unidos, há 40 milhões de anos? Sinto-me, no entanto, levado pelo mesmo impulso ─ primitivo, um tanto técnico, artístico, prático, místico ─ dos que ergueram o grande círculo de Stonehenge além das possibilidades e meu problema começa justamente quando não consigo  sequer definir esse... xis ─ versátil, esperto, cheio de êxtases, paichões e ezageros sem nékso, incerto ─ que assume o... compromisso de fazê-lo, aqui, nesta humana, precária, caixa craniana?


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NOTA DO BLOG:
1. A forma como o texto está disposto difere um pouco do original no livro, mas sem perda qualquer para o sentido que o autor dá. O livro em questão é de uma riqueza e uma graça imensas, como é comum aos escritos do W.J. Solha. O excerto é do texto UM, páginas 29/30. O livro pode ser adquirido aqui: EDITORA PENALUX.

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● W.J. Solha está na segunda edição de Kaya [revista de atitudes literárias]:

│Autor: W.J. Solha

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

VAGAR


Dobro a esquina
do abraço
a lume posto

Doce de amora
de ponto
desatado

Dispo o vestido
no vagar do corpo
preencho de prazer o que está vago.


│Autora: Maria Teresa Horta

SEQUESTRO



Ah! a tua
língua

Alongada na sua
trança
de saliva branda

Tão ácida
tão meiga

na minha anca



│Autora: Maria Teresa Horta

MAIS



Deixa que a maciez
adoce
os membros

Os torne mais meigos
aos abraços

À febre
mais afoita
que os tornozelos abrem.


│Autora: Maria Teresa Horta

FASTIO



Às horas, ocasos semeados,
sínteses frágeis, volatilidade,
vida que se esvai sem nunca ser.

Dizer e redizer o visto
sob a luz mais mortal.
Repassar a outrem
(também fantasma)
o cardápio, a dor, o sorriso,
gélidas imagens que desaparecerão.

E o amor? E a poesia?
E aquela janela donde se via
o azul imaginado no canto do pássaro?


│Autor: Webston Moura

terça-feira, 15 de setembro de 2015

UM PEQUENO ANJO INÓCUO




Há um imenso silêncio,
o desta boca que, acossada,
recolhe sua matéria.
E, nela, não aparece
o homem que poderia,
mas apenas sua sombra.
E este silêncio é uma cidade vazia,
uma lâmpada deficiente,
um pequeno anjo inócuo,
objeto de gesso e inércia.


│Autor: Webston Moura

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Vidro-me





vocação
para aquários
é o que me salva
do abismo.




Iara Maria Carvalho [Currais Novos-RN - 1980]é graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem, pela UFRN. Foi uma das fundadoras do Grupo Casarão de Poesia, atuando como agente cultural em sua cidade, e hoje integra o coletivo Novos Potiguares. Como poeta, venceu o 3º Concurso de Poesia Zila Mamede (Parnamirim/RN, 2006) e obteve a 3ª colocação no Concurso Nacional de Poesia Helena Kolody (Curitiba-PR, 2010), dentre outros concursos. Participou de diversas coletâneas de poesias resultantes de premiações literárias e compõe uma das cinco vozes femininas presentes no livro “Por cada uma”, publicado pela editora Una, em 2011. Nesse mesmo ano, lançou seu primeiro livro de poemas, “Milagreira”. O presente poema consta de seu livro “Saraivada” (Sarau das Letras, 2015).

Lúdica


escrevo
com a
musculatura
alegre
e oriental
de quem
descansa
sobre o verbo
e entre as flores.




Iara Maria Carvalho [Currais Novos-RN - 1980]é graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem, pela UFRN. Foi uma das fundadoras do Grupo Casarão de Poesia, atuando como agente cultural em sua cidade, e hoje integra o coletivo Novos Potiguares. Como poeta, venceu o 3º Concurso de Poesia Zila Mamede (Parnamirim/RN, 2006) e obteve a 3ª colocação no Concurso Nacional de Poesia Helena Kolody (Curitiba-PR, 2010), dentre outros concursos. Participou de diversas coletâneas de poesias resultantes de premiações literárias e compõe uma das cinco vozes femininas presentes no livro “Por cada uma”, publicado pela editora Una, em 2011. Nesse mesmo ano, lançou seu primeiro livro de poemas, “Milagreira”. O presente poema consta de seu livro “Saraivada” (Sarau das Letras, 2015).

Rosário



tenho trinta anos,
um livro de poemas
e nenhum colar de pérolas.

pouco me importa se as palavras
são inúteis.

abro a esquisita concha
e brilho.




Iara Maria Carvalho [Currais Novos-RN - 1980 ]é graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem, pela UFRN. Foi uma das fundadoras do Grupo Casarão de Poesia, atuando como agente cultural em sua cidade, e hoje integra o coletivo Novos Potiguares. Como poeta, venceu o 3º Concurso de Poesia Zila Mamede (Parnamirim/RN, 2006) e obteve a 3ª colocação no Concurso Nacional de Poesia Helena Kolody (Curitiba-PR, 2010), dentre outros concursos. Participou de diversas coletâneas de poesias resultantes de premiações literárias e compõe uma das cinco vozes femininas presentes no livro “Por cada uma”, publicado pela editora Una, em 2011. Nesse mesmo ano, lançou seu primeiro livro de poemas, “Milagreira”. O presente poema consta de seu livro “Saraivada” (Sarau das Letras, 2015).