segunda-feira, 30 de julho de 2018

CAJARANAS ROUBADAS


Éramos amigos, éramos crianças.
Ainda não existiam os interesses,
essas coisas de homens adultos,
todas essas importâncias
com que lutamos
(uns com os outros)
até a morte.

Éramos crianças na praça,
sem horas terrivelmente marcadas,
sem levar às mãos às partes sofridas do corpo,
sem outros medos que não os do pai.

Nós nos entendíamos,
tu e eu,
mesmo nas discórdias,
que até essas eram nobres.
Nós nos entendíamos,
tu e eu,
com o rosto sujo,
o riso fácil
e cajaranas roubadas de outro quintal.


│Autor: Webston Moura│

TRIPLOV




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sábado, 28 de julho de 2018

ABDUZIDOS




Symphony in Grey anda Green: The Ocean (1866-1872)
- James McNeill Whistler




Objeto de sentir inteiro,
ver o mar é pouco.
Mesmo de olhos fechados,
o som, o vento e os cheiros
nos abduzem.

Ali na praia,
ainda que seguros na areia
e nas constatações da física,
somos viajantes.

O mar nos desperta
para o passado já esquecido
e nos devolve,
inebriados,
ao Todo
─ ou à ilusão bendita Dele.



│Poema da Série “Mar” – Autor: Webston Moura│

A PRIMAVERA, SEMPRE


Esta valsa dentro da cabeça,
a casa vazia,
o tempo.

Teus olhos,
vividez sem fim,
lembrança minha.

Dizem que é dor,
ingenuidade,
teimosia,
coisa de velho.

Não nego,
nem confirmo:
apenas digo
que á a primavera
(de Chopin,
obviamente*).


│Poema da Série “Tempo e Vida” – Autor: Webston Moura│

_________________

NOTA:
A Primavera, de Chopin, é, na verdade, "Mariage d'amour", ao menos na versão que o administrador deste blog encontrou na web. Sobre o assunto, curiosa esta nota encontrada na Wikipedia:


Mariage d'amour (Inglês: Casamento de Amor) é uma peça de piano solo francês, composta por Paull de Senneville em 1979, e pela primeira vez pelo pianista Richard Clayderman de seu álbum "Lettre À Ma Mère" em 1979. Mais tarde, o pianista George Davidson realizada esta peça de música de seu álbum "My Heart Will Go On" com uma versão ligeiramente diferente. Esta versão às vezes é erroneamente atribuída a Frédéric Chopin como "Spring Waltz" por causa de um upload no YouTube com o título errado, que alcançou mais de 34 milhões de visualizações antes de ser finalmente removido. A partir de maio de 2018, várias novas cópias com esse título errado estão disponíveis no YouTube, e uma delas alcançou mais de 30 milhões de visualizações. [https://en.wikipedia.org/wiki/Mariage_d%27amour].

O TAMARINDEIRO


Velho, mas ainda forte,
dando sombra e algum fruto,
resistindo às chuvas,
pairando no silêncio,
pouso breve de algum viajante,
o tamarindeiro.

Em seu caule,
dois nomes cicatrizados
e unidos só neste enquanto,
que as pessoas não deram a mesma sorte.

De seiva escorrida e pedrada,
uma declaração que se pôs em não:
Te amo....


│Poema da Série “Árvores” – Autor: Webston Moura│

sexta-feira, 27 de julho de 2018

BRINCADEIRA


Pegávamos talos de carnaubeira
e fazíamos espadas e cavalos.
Melhor que fosse sábado, pois não tinha aula.
Dividíamo-nos em grupos e combatíamos,
mas sem ferimentos ou violências outras.
Era uma brincadeira apenas.

Havia os meninos mais engenhosos,
os que faziam os cavalos um pouco mais bonitos.
Mas, cavalos e espadas prontos, a beleza requerida
era mais a de imaginarmo-nos guerreiros de terras distantes.

Horas depois, suados e felizes,
deixávamos os brinquedos nalgum ermo, num terreno qualquer,
onde o sol e a chuva devolveriam a natureza à terra.
E, sempre que precisássemos, existiam carnaubeiras sem fim.
Carnaubeiras e, claro, carnaubais, onde o vento, quando bate,
faz som de marés nas folhas, como se o próprio mar, levantado e aéreo,
percorresse o sertão, livre, também brincante.


│Autor: Webston Moura│

O CACIMBÃO


Era um cacimbão grande, fundo.
Embora desativado, ainda continha água,
uma água escura, quieta.
Na escola, era um dos lugares mágicos,
mesmo que isso se desse por medo.
Íamos ali, à sua boca, olhar
e temíamos aquelas paredes descascadas,
aquela água parada, a parecer antiga,
onde algum monstro havia de morar,
para sair durante a noite.

Um dia, um gato caiu no cacimbão.
Um garoto, astuto de sua natureza,
fez um laço e o retirou lá de dentro,
içou-o à borda, salvando-o.
Aplaudimos nosso herói.
Até a diretora gostou.

Os anos se passaram.
Sem perceber, estávamos maiores
e atentos ao andar das meninas.
Suas saias eram tão bonitas.
Seus perfumes, seus cabelos.
Foi assim que nos esquecemos do cacimbão,
ao menos de olhá-lo tanto.
Mas, nunca o deixamos totalmente.

Dizem que ele não existe mais,
que fora aterrado com entulho
e que lhe pesam,
sob a escuridão da terra,
muitas toneladas de memória.


│Autor: Webston Moura│

PEQUENA CRÔNICA DE UM POVOADO EXTINTO


Havia umas velhas máquinas,
já carcomidas de ferrugem.
Abandonadas ao nosso olhar de criança,
não eram desusos, mas invenções de mundos.
Para trás das casas, a mata, onde se ia buscar mel e juá,
além do mais que os adultos necessitavam.

Todos éramos muito iguais,
mas da igualdade que não letargia.
Éramos iguais de conviver,
iguais da vizinhança familiar.

Bem por isso os discos voadores
e as estórias de visagens eram mais sonháveis,
os medos eram mais lúdicos
e os assaltos eram apenas assunto de TV.

Um dia,
puseram fogo na plantação,
por acidente,
o que, para nós,
em vez de problema,
foi visto como quebrar a rotina:
crianças, adolescentes e adultos
correndo com água para tudo apagar,
praticamente uma gincana.
Mas, do outro lado,
as máquinas não pegaram fogo,
protegidas por uma civilização alienígena
que ali desempenhava futuros projetos de invasão da Terra.


│Autor: Webston Moura│

BEIRA DE RIO


Beira de rio,
onde se escuta o vento
acariciar a vegetação.

O sol,
em hora mansa,
clareia mais que aquece.

Por cá,
a solidão não dói,
não é tratada com tarjas pretas.

O tempo,
nesta paragem,
não corre.

E meu coração é todo humano,
fruição sem mácula,
quase materno.


│Autor: Webston Moura│

quarta-feira, 25 de julho de 2018

EXÍLIO



Hoar Frost (1906) - Lucien Pisarro





Sou senhor de coisas poucas,
pequenos atos, passos discretos.
       Lá fora, onde os outros gritam
                   seus corpos em chamas,
                         suas palavras certas,
                          não principio gesto,
                                           não caibo.

Nesta pequena vereda,
conversa íntima e serena,
de azuis acalmados,
moro.

Por isso, esta economia de desejos,
estas mãos buscando as brumas
quando a manhã ainda é trégua.


│Autor: Webston Moura│


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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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SINGRAR



Ponho o barco à disciplina do vento.
Meço o mês, as estrelas, a experiência.
Navego outro começo, reinauguro mão e senda.
Tudo é luz, sol repleto por sobre a Terra.
E eu, ainda que pouco por sobre as águas, vou-me,
                                                      um tanto de pássaro,
                                                          um tanto de medo,
                                                           um pouco por dia,
até me esquecer do tempo.


│Autor: Webston Moura│

ALVORADA



Bárbara luz,
um sabiá cantando a graça de si.

Onde os homens não endinheiram,
o mato rasteiro avança.

Livre, uma vaca pasta o gratuito.
Como no primeiro dia do mundo,
as águas nascem e caminham.

É sempre manhã, onde esperançamos infâncias.


│Autor: Webston Moura│

quarta-feira, 11 de julho de 2018

ENQUANTO O ORVALHO ME TOMA



Arredio a más notícias,
carrego uma esperança quieta.
Não a quero em alardes,
mas como roupa ao corpo.
Tenho serena alegria
sob uma dor apaziguada,
mãos mais suaves e ternas
e um olhar mais demorado.

Mas, ainda que melhor,
gostaria de uma casa
mais para dentro do mato,
onde pudesse esquecer
de toda essa demasia,
excesso de tudo-tudo,
páginas que o fogo devora
nesta pressa de desvios
que me degredam de mim.


│Autor: Webston Moura│

terça-feira, 3 de julho de 2018

CONSTATAÇÃO ÁCIDA NA HORA DO CAFÉ



É verdade, é muito verdade:
somos umas ilhas, agoniadas ilhas.

A quem nos dirigimos, cantos nervosos, nesses falares?

É verdade, é muito verdade:
estamos frágeis, por isso, armados,
armados de medo e de sobreavisos;
contando os prós, contando os contras;
perdendo a conta, o sono, a hora.

É verdade, é muito verdade:
o débito; a falta; o quase; o tudo
           ─ esta coisa de mil nomes
                        ardendo nas mãos,
             vida, seu chamado e sua insuportabilidade.


│Autor: Webston Moura│

CONFISSÕES NO DOCE DESERTO DA NOITE


Alma antiga, lembranças, tempo fluido:
este moço, agora envelhecendo, sou eu.
Há uma janela imaginada, mas muito clara,
donde olho, docemente, o que me acalma o sangue.
Fecho os olhos e sigo; sei que deve ser assim.
É o que sou, uma passagem, uma travessia alerta.

Escuto a noite, inteira noite,
coisa livre e oculta aos homens.
É quando, com total paz,
percorro Artur Verocai, 1972, sublime.
A música me toma.

À tarde, passeando com meu cão, pequeno cão,
observo sua alegria, que é como a minha.
A alegria sem soberba, a alegria simples.
Como meu cão, o ato de estar já me basta.
Estar entre as mansas coisas que me acolhem.
Como aquelas nuvens que o vento tange,
a gratuidade de suas existências.

Existir deveria ser sem muita intenção,
apenas ir-se estrada sob o sol, sendo.


│Autor: Webston Moura│