terça-feira, 11 de agosto de 2020

MINHA BELA DAMA



Panicale, Itália



Só falta a Audrey Hepburn,

de “My Fair Lady”,
surgir do outro lado.
Sei, isso não faz sentido,
mas foi o que me veio:
um vestido branco,
uma sombrinha de plumas,
um chapéu bonito.

(Ela sorri e me olha com inofensiva ironia).

E esta viela,
qual flor aberta,
humilde e sublime,
aonde vai dar?

Em aqui estar
neste apenas cheio de eternidade.


│Autor: Webston Moura│

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

ENQUANTO OUVIA DJAVAN



Untitled - Kenzo Okada




Ouvia Djavan, bebia, tinha o olhar perdido
e não parecia querer companhia.
Se chorava, não deu pra ver direito,
mas é possível quando se bebe e se escuta Djavan.
Mas, também, àquela hora, o sol se pondo,
tons laranjas no horizonte, brisa leve,
riso e melancolia em redor, como não?
Faltava o que? Um cão, só, a chegar ao pé, com fome?
Pois chegou. E ganhou um pouco de comida, alegrando-se.
É assim! Quando se sofre, bom é dar-se, ainda que para um cão.
Levantou-se, devagar, seguiu para o mar, os pés nus na areia.

Não voltou.


│Autor: Webston Moura│

ARCANO 22


O novo normal, diz-se,
depois de tantos mortos
e de todo o horror de se estar num país à deriva,
onde muitos querem beber nas praias,
como se fosse carnaval,
e outros, assustados,
querem apenas sobreviver.

E daí?!,
pergunta o arcano 22,
tocando lira à beira do abismo.


 │Autor: Webston Moura│

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

TOMAR CAFÉ


Uns adoram café,
mas, ao certo, eu não sei bem o motivo.
Nem me pergunto se vale pensar nisso,
embora, por razão que me foge, acabo pensando.
Imagino que por achar alguma estranheza
em tanto louvor ao café, que não odeio, claro,
mas que também não amo.
E cá estou a falar nisso.

Parece-me que há algo especial
em se dizer ou se mostrar que tomar café é adorável.
Ou, quem sabe, seja o saber de encontros
que um café gera, xícaras multiplicadas,
uma troca de palavras, olhares, sorrisos, risos,
confidências, insinuações ou só café mesmo,
se é que o ritual do café possa ser só de toma-lo.

A propósito: qual a origem da palavra “xícara”? 


│Autor: Webston Moura│

SIMPLESMENTE



Horseman Palimpsest - Walter Battiss




Você,
que os outros não notam,
anda por aí, nos ares,
de árvore em árvore
e no aonde o obscuro se fecunda.
 
Você,
pardal livre, suave e jovial,
anda por aí, longe desse ruge-ruge de más notícias
e de tudo o mais que fabrica ilusões.
 
Você,
rocha, mar, madeira da janela,
céu avermelhado de poente,
caco de coisa vã, asa e café,
anda por aí e faz-se liberdade
quando nem se presta a pensar nisso,
mas apenas em estar por aí,
estação de trem, pedaço de poema,
o que acontece, simplesmente.

 

│Autor: Webston Moura│





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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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sábado, 11 de abril de 2020

UM PASSEIO DE CANOA





O que havia do outro lado do rio? As chuvas engordavam de águas aquilo tudo, o rio fazia-se majestoso, feroz, escuro, vinha de longe e para mais longe se ia. E do outro lado, que casas eram aquelas e quem ali vivia? Não era de todo que não sabia, claro, já que alheamento completo era impossível. Mas, ali, casas distantes, mas a vista, com gente que ia a vinha, já não era a cidade, era outra coisa, o desconhecido.

Por vezes, ficava eu à beira do rio, em segurança, claro. Observava as canoas e seus condutores, os quais usavam, a princípio, enormes varas para navegar. Eles tocavam o fundo e tomavam impulso. Depois, com o rio muito cheio, já não alcançavam o fundura do leito, lá embaixo e, então, trocavam as varas por remos. As canoas levavam gente e mercadorias, algum animal menor, cães, carneiros, algo assim. Os remadores davam contra a corrente, formando quase um meio círculo nas águas, evitando a força maior do rio. Chegavam ao outro lado, cansados, e ali deixavam as pessoas e seus pertences. Em tempos de muita chuva, quando o rio transbordava para o lado de lá, os baixios sucumbiam mais cedo e parte das casas ficava com água quase no telhado. Para onde iam as famílias?

ALFABETIZAÇÃO





Os nomes das coisas, a possibilidade de classificá-las, distinguindo-as a partir de suas características próprias, e, de alguma forma, colecioná-las, dispô-las em conjunto, delas apossar-se, tê-las, guardá-las. Os nomes de tudo, mas não apenas de se saber falar, sonorizar, mas de se assentar num papel, num caderno, retendo, riqueza que se possui, embora não se possa trocar por comida ou outro bem, nem oferecer, tal pedaço de bolo, a um amigo ou irmão. Buscar a parte que nos cabe no mundo, alfabetizar-se, adentrar os domínios da língua e da linguagem e, deste modo, subir, crescer, evoluir, tornar-se alguém.

A cartilha era a ferramenta que dispunha da seguinte estratégia: para cada letra, a associação a um bicho. “A” de abelha, uma abelha cuja figura era de uma só asa, curiosa e mágica. E as outras letras, os outros bichos, mais de vinte. Para uma criança, uma imensidão de novidades dada como brincadeira. A professora, de nome agora injustamente esquecido, era a condutora da aventura. Jovem, enérgica, mas terna, sabia que éramos crianças, não meros ignorantes. E nos ensinava com o melhor que podia.

terça-feira, 31 de março de 2020

"As árvores finalmente despertam"






As árvores finalmente despertam.
Uma claridade nova rodeia já
a ameixoeira vestida de noiva
e as trovas em seus ramos
não tardarão a arrancar-nos das mãos
a insensibilidade fria do inverno.
Seremos então, amor, um rumor
alegre de água, a correr
no lugar das mágoas que já não são.
E falaremos de nós deslumbrados
apenas porque
uma brisa de março
subitamente nos tange o coração.


│LÍDIA BORGES, in GARÇAS (Poética, 2019)
│Ilustração ©Gemma Capdevila

domingo, 29 de março de 2020

CORAÇÃO DA ÁGUA





Ninguém sabe onde está
o coração da água
Volátil, incerto e sem costura

da condição da chuva
das lágrimas vorazes
Com nós de avidez e de sutura

de limpidez, de orvalho e no seu rasto
sequioso, incauto e inconstante
Tão lívido Tão pálido Tão exausto



│MARIA TERESA HORTA, in ESTRANHEZAS (D. Quixote, 2018)
│Fotografia: Beneath The Sea, de Martha Suherman

sexta-feira, 27 de março de 2020

REMANSO



Summer #3 - Richards Ruben


Não o tumulto de idas e vindas,
nada de encontros, nada.
Apenas a areia branca, despoluída,
o ar sereno, os pássaros bailando.
Onde se divisa um barco, ilusão:
ao longe, os fantasmas nascem.
Onde o som de uma voz, a impressão,
nada mais que isto, nem o que se imagine.
E as cores soltas se cruzando,
conforme o sol se repete no espaço.

Dia, noite, dia, noite...
Sabe lá o que é não precisar de relógio.



│Autor: Webston Moura│

A FÚRIA



A vida um tanto interditada:
muita novidade e pouca substância.
Os dias rolando, as coisas acontecendo,
tudo se enredando e caindo num fosso de esquecimento.

Olho ao espelho, certo dia, e me surpreendo
destes anos velozes, anos moídos sob agressiva luz,
anos em que tanto estive e, simultaneamente, não estive
aqui.

Há esta fúria que nos consome,
como algo que parece nem estar acontecendo.



│Autor: Webston Moura│

quinta-feira, 26 de março de 2020

INOCENTE



Untitled - Albert Oehlen



Teu nome,
o meu,
ali,
aos poucos,
desenho feliz,
que pousamos
no eterno.

Derrubaram a árvore
e construíram uma locadora.
E agora, depois de umas dez utilidades,
só o pequeno prédio fechado,
cadeado, corrente, escuro, silêncio.

Dá-me vontade, sabe, de compra-lo
e derrubar tudo; fazer voltar o vazio
e, nele, plantar outra árvore, uma muda,
esperar crescer e, novamente, pousar nossos nomes.

Sei, é loucura isso.
Mas, sabe, dá-me vontade exatamente disso,
de ter toda coragem que temos quando jovens
e aquela sensação de que nada nos deterá,
de que toda revolução, do amor ao mais, é possível
e que tudo depende apenas de dar um passo a frente.

Dá-me vontade de ser inocente, de novo.



│Autor: Webston Moura│

A PORTA QUE NÃO SE ABRE



Untitled - Hassan Massoudy



A porta que não se abre,
use-se de sabedoria alta ou popular;
use-se de força ou jeito.
A porta que não se abre,
como a presença mais incômoda,
mais que areia nos olhos;
mais que o mais imaginável obstáculo.

Ou seria tudo exagero,
vício do olhar,
máquina boba de um repetir-se,
canto alongado e perdido diante da parede?



│Autor: Webston Moura│

sábado, 21 de março de 2020

ESTAÇÃO VIDA




As ruas vazias.
Novamente, pode-se ouvir o vento
e a naturalidade de tudo o mais
que foi exilado pela nossa ruidosa presença.

Das janelas, uma alegria misturada com uma tristeza
e uma espancada esperança que se tenta segurar às mãos.

Diz-se que amanhã é (será) outro dia,
mas sabe-se que ainda há uma dor a ser percorrida.

É irônico que estejamos nisso tão juntos,
mas não possamos sequer apertar as mãos uns dos outros.

Entrincheirados, tentamos nos proteger do inimigo,
esta coisa invisível, silenciosa e disciplinada.



│Autor: Webston Moura│

terça-feira, 17 de março de 2020

"A claridade alastra..."






A claridade alastra
- no teu cabelo é sempre sul

a mão pousada na almofada
como se lhe tivesse escapado
um animal filtrado pela noite

esse teu sono tão satisfeito
de ignorar a vileza
dos que fazem o dia

respira
a minha vigília durará ainda
o tempo de dares por terminado
o filme supremo
o bocejo corolário

não há pressa

beijar-te-ei a face
como se me tivesses salvado


VASCO GATO, in UM PASSO SOBRE A TERRA (Língua Morta, 2018)
Fotografia: Cloaked Beauty, de Baden Bowen