Os nomes das coisas, a possibilidade de classificá-las, distinguindo-as a partir de
suas características próprias, e, de alguma forma, colecioná-las, dispô-las em
conjunto, delas apossar-se, tê-las, guardá-las. Os nomes de tudo, mas não
apenas de se saber falar, sonorizar, mas de se assentar num papel, num caderno,
retendo, riqueza que se possui, embora não se possa trocar por comida ou outro
bem, nem oferecer, tal pedaço de bolo, a um amigo ou irmão. Buscar a parte que nos
cabe no mundo, alfabetizar-se, adentrar os domínios da língua e da linguagem e,
deste modo, subir, crescer, evoluir, tornar-se alguém.
A
cartilha era a ferramenta que dispunha da seguinte estratégia: para cada letra,
a associação a um bicho. “A” de abelha, uma abelha cuja figura era de uma só asa, curiosa e mágica. E as outras letras, os outros bichos, mais de vinte. Para
uma criança, uma imensidão de novidades dada como brincadeira. A professora, de
nome agora injustamente esquecido, era a condutora da aventura. Jovem,
enérgica, mas terna, sabia que éramos crianças, não meros ignorantes. E nos
ensinava com o melhor que podia.
Ao
voltar para casa, a pé, amiguinhos lado a lado, todos falávamos, uns mais ávidos,
outros mais de escuta. E, ao passar por um cachorro, já imaginávamos assentá-lo
num papel, no caderno, o nome dele, não ele mesmo, claro. Mas ainda não
sabíamos como exatamente fazer isto. Uma casa, uma árvore, uma bicicleta, o
nome ainda obscuro de algum letreiro, a inscrição nalgum veículo... Agora era
questão de tempo.
A
mãe era a nossa segunda professora, menos preparada em conhecimentos e mais ansiosa
de que soubéssemos ler e escrever. Dava-nos a lição de casa, percorrer a cartilha,
cobrir letras a lápis em cadernos de caligrafia, contornando-lhes o desenho, uma curva aqui, uma reta
ali, uma palavra que se formava, tijolinho por tijolinho, as sílabas e suas
famílias. Iam-se os dias.
Lembro-me
de quando acabou-se a estória da cartilha, cumpridas todas as letras e todos os
bichos. Não compreendi. Pedi a professora que continuasse a aventura. Ela, com
um sorriso, disse-me já haver terminado. Continuei não compreendendo e, dada a
chacota que os coleguinhas fizeram, achei melhor aquietar-me e aceitar. Depois,
claro, com o tempo, soube ser apenas uma estratégia aquela coisa de letras e bichos.
E que o que importava era ter penetrado e desvendado o mundo da escrita e da
leitura, podendo agora ser gente, como diziam os mais velhos. Cachorro, árvore, nome de pessoa, de estrela, de coisa ordinária ou rara, agora de tudo eu podia assentar na rudeza daquele caderno barato.
│Autor:
Webston Moura│
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Webston Moura, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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