segunda-feira, 9 de março de 2020

SOB O MARULHO DAS ÁGUAS



Luz da lua - Albert  Pinkham Ryder


É desta atmosfera que falo:
verde em repouso, um tanto fosco,
sob a luz coalhada no ar úmido.
Se azul há, oculto está sob o lençol dos ventos,
lugar de disfarce do tipo mostra e não mostra.

E o mais é um silêncio imenso,
silêncio de paz que se faz sob o marulho das águas.



│Autor: Webston Moura│




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terça-feira, 3 de março de 2020

OUTONO




Autumn Landscape - Maurice Vlaminck



Quando não mais se espera
a vitória sobre o tempo,
nem se vai gerar herdeiros,
tampouco instigar a terra
a dar cereais ou frutas.

Quando os cavalos
não mais relincham nos prados,
e se observa a chuva, de longe,
sem querer domá-la.

Quando o amor é mais de olhares
e de cúmplices silêncios,
cuidados de por a manta às pernas,
evitando o frio, e de oferecer café
ou outra amizade.

Quando se tem mais compaixão
da vida ser tão bela e, assim mesmo, passar.



│Autor: Webston Moura│




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segunda-feira, 2 de março de 2020

GRANADA



View of Granada - Santiago Rousiñol


Onde achou
e perdeu
um amor.

Descobriu um poeta
de um século já longe,
um judeu ou um árabe,
que lhe ensinou,
quase sem querer,
o que de outra forma
jamais saberia.

Onde foi feliz
e o será,
eternamente.



│Autor: Webston Moura│




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CLANDESTINOS



City - Olga Rosanova


Ainda guarda lugares calmos,
secretos jardins de moças em flor?
Ou tudo de si que é secreto
tornou-se também clandestino?

Passamos por aí,
eu e outros transeuntes,
escapando do trânsito
e, se possível, da violência,
e só nos olhamos de soslaio,
como credor e devedor
ou como o cão raivoso olha para outrem.

Acima de tudo, sentimos medo.
E alguma coisa ainda amamos
ou, pelo menos, damos por falta,
saudade que não resolve,
que apenas ilude um pouco.

A cidade nos exilou de nossa humanidade.



│Autor: Webston Moura│




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domingo, 1 de março de 2020

O CICLISTA



O Ciclista - Mario Sironi



Não cabe na paisagem
senão como estranheza.
Não cabe na pressa de ganhar,
de comer, de ter, de aparecer.
Simplesmente, não cabe:
rejeitam-lhe a elegância e a poesia;
a espontaneidade com que, criança,
vagueia, sem agressividade, por entre
                                       a massa de caos.


É o insistente ciclista,
seja o simples urbenauta
ou alguém tentando ganhar a vida.

A rua, amigo, está fechada pra você,
encomendada, pois, aos carros e seus ávidos motoristas!
A rua, quer dizer, a cidade tem dono
− Não viste os avisos?


│Autor: Webston Moura│





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DISFARÇADA TRISTEZA



Regatta at Saint-Adresse - Claude Monet



É um dia tranquilo, apesar das nuvens.
Passeia-se, mas não se vai longe;
conversa-se discretamente.
Há uma alegria no ar.
Um cão, uma jovem, um chapéu,
uma concha, um sorriso, a marola.
Não se pensa que deuses duelarão,
nem que, por força da fraqueza,
homens venham a se fazer menos.
Nada falta e nada sobra,
nem a sereia sonhada
ou a disfarçada tristeza
que ora se traz à mão.


│Autor: Webston Moura│



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O QUE MEU CORAÇÃO ILUMINA



Woman in Front on the Fireplace - Edouard Vuillard


Domino este mundo,
pequeno mundo de coisas a fazer,
mas não só: reino nas alegrias miúdas
da invisibilidade buscada e, pior, conseguida.
Não conquistarei impérios, sei;
são as condições deste tempo.
Entretanto, da beira das coisas que minhas mãos alcançam,
quem poderá retirar-me da febre alquímica que me toma?
Ainda que meus sonhos não derrubem reis,
cá estou acendendo o que meu coração ilumina.


│Autor: Webston Moura│



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TEMPO FEITO




Sei fazer. Faço
a canção inerente
ao amor emocionado

desfaço a hora
da leitura e nos textos
guardo letras
inerentes ao fogo

           consumido

sei fazer: desfeito
me reapresento
ao tempo

         e o tempo
         existe.


│Do blog do autor: http://pedrodubois.blogspot.com/

sábado, 29 de fevereiro de 2020

SEGREDO



Aguarela e guacho: Seagulls,
por © Donna Carlisle Noice


Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.

FERNANDO PINTO DO AMARAL, in ÀS CEGAS (Relógio d' Água, 1997)

ETERNIDADE



Aguarela: Into The Mystic, de Sarah Yeoman


Sempre vivemos para além
da memória
apesar do lapso apunhalando o tempo

Porque antes fomos
connosco noutra hora, e agora
voltamos quando já nos esquecemos

Onde fica a fissura, a brecha
por onde passámos
a chegarmos de novo ao nosso presente

Infringindo as regras das horas
improváveis
hoje igual a ontem, já inexistente

Partimos e tornamos na nossa
eternidade
assim a repeti-la num infindo repente

Perdidos um do outro sempre
a regressarmos, revertendo
a queda que nos ata e desprende

Onde está o estilete de cravar
no peito, onde está
o incêndio, onde está o veneno?

Tanta imprudência que jamais
revelamos, calando
um ao outro aquilo que queremos

Fugaz a madrugada volta a luzir
no espaço, entre o prazer
aceso e o lento segredo

Efémeros os sentimentos
que depois se refazem
como se dissolvem as paixões ardentes

Apesar das tormentas,
para sempre voamos
século após século no ressalto dos ventos


│MARIA TERESA HORTA, in ESTRANHEZAS (D. Quixote, 2018)