quinta-feira, 2 de junho de 2016

NA MOENDA DOS DIAS

Entre ossos, alguma graça.



Um ônibus atravessa meus olhos, como aos do cão cor de naufrágio, que também segue. A rua, interditada de perigos, já não me abraça senão de aflição e pressa. Quem vem lá? Um cidadão ou um desencontro? Uma senhora, lenta, carrega sacolas (medos, fardos, noites mal dormidas, alguma alegria) e, a custo, consegue distinguir o sinal ─ certo? selado? irrisório? Uma criança e sua mãe passam na outra calçada, e tudo é tão veloz na máquina de ir e vir, que paro, mas apenas na míngua de um lapso. O tempo passa, o tempo não passa. O relógio, meu pulso, meu suor, minha calça de quinta-feira, um cisco no olho, uma guimba, o poste, muros. Em redor, absolutamente, a cidade, sempre e incansável. Moro no mais tarde, depois das onze. O jantar: requentá-lo; comê-lo. Na TV, um homem frágil explica taxas e gráficos, coisas que não entendo. No silêncio, antes de dormir, sei que todos os amanhãs já se foram e que tudo é tão somente o cumprimento de uma rotina. Desligo a TV e me apago. Sono adentro, escutas noutro radar, ouço a moça estrangeira de um filme já antigo. Na névoa de um sonho, entrevejo seu olhar: Lauren Bacall, Uma Aventura na Martinica.



[Na esquina, um banquinho na calçada.
Todos já sabem: ele não é muito de dormir.
Fuma um pouco, enquanto a noite cavalga.
Toma café, escuta o rádio, acompanha os que vão e vem.
Ninguém lhe aborrece, nem os bêbados.
Não é triste, não se queixa, não tem ambições, nunca teve.
Em vez de alegre, leve, que foi o que de melhor aprendeu.
Telegrafa-me um olhar; gesticula, suave, com a mão. Um amigo.
Irmanamo-nos no anonimato dos que
gastam suas vidas comendo jantares requentados
e sonhando com Lauren Bacall.
Veio de longe e sempre de longe será,
pois sua força é um tipo de resistência
que se adapta a diferentes geografias.
Aos sábados, mas não só, toca seu clarinete.
De cá, cantando baixo, acompanho O mundo é um moinho.]



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NOTAS:
1. Lauren Bacall, atriz norte-americana reconhecida por seu talento, extensa obra e inevitável beleza.
2. O mundo é um moinho, música de Cartola que você escuta aqui: https://youtu.be/.

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│Autor: Webston Moura
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domingo, 29 de maio de 2016

DE PASSAGEM



Eu realmente me canso de te ver repetir normas a seguir, normas a quebrar. Para construir ou demolir mundos, sou pouco. Estou de passagem, e o tempo é curto. De camisa azul-claro e calça jeans, não preciso de mais que algum era uma vez e a liberdade de caminhar por aí, sem atentar para o último round entre gregos e troianos. Não leve tão a sério o que pensa. O tempo te dirá o contrário, um jogo infinito de possibilidades, que você, talvez, não queira enxergar. Olha: na janela daquele andar, um vaso que não vai cair. É a vertigem que te deve impulsionar; não o medo de não conseguir controlar o movimento das coisas. E eu só preciso de um drink e de uma verdade que não se pronuncie como um mandamento ou um chamado para uma guerra. Você desaprendeu a pulsação de Down to the Waterline. Você desconsidera abrir as janelas. Deixou uma gramática ofendida nascer entre as nossas palavras.



[Tinha medo. E o tinha como a um tesouro.
Cuidava-o, como a uma horta se cuida.
Tinha os dedos gastos uns nos outros;
as mãos, entre si, cerradas,
fecho de aço que não se quebra.
Tinha a boca seca, as íris abrasadas
e a mais incrível saudade de uma palavra,
que poderia ser qualquer uma,
se possibilitada no bem.]





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NOTA:
1. Down to the Waterline, escute-a aqui [https://youtu.be/]

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│Autor: Webston Moura
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sábado, 28 de maio de 2016

cão

as pulgas pululam
dorso
dores
alma
do meu cão

as pulgas se banham
no sangue
sugado
do meu mísero cão

pulgas não fugazes
iscas de mares
desertos
no olhar triste e insólito
do meu cão

a guarda fica pra depois
meu cão vagueia em passos trôpegos
de uma carruagem perdida

meu cão
branco é o seu olhar de solidão


│Autor: Oreny Júnior
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Oreny Pires de Sousa Júnior é natalense, filho de seu Oreny e dona Zefa. Viveu da infância à adolescência nas ruas e morros da Cidade da Esperança. Nesse bairro conviveu com músicos e poetas. A vida malvada o tangeu do bairro, lançando-o nas estranhas desse país trecheiro. Nesse exílio, necessário de doloroso, catou seus poemas no pedregulho da vida sem o uso de luvas. Alguns foram retirados a fórceps de suas entranhas. Agora, estão aqui, gritando neste livro. [Janilson Carvalho – Professor]