Entre
ossos, alguma graça.
Um
ônibus atravessa meus olhos, como aos do cão cor de naufrágio, que também segue. A
rua, interditada de perigos, já não me abraça senão de aflição e pressa. Quem
vem lá? Um cidadão ou um desencontro? Uma senhora, lenta, carrega sacolas (medos,
fardos, noites mal dormidas, alguma alegria) e, a custo, consegue distinguir o
sinal ─ certo? selado? irrisório? Uma
criança e sua mãe passam na outra calçada, e tudo é tão veloz na máquina de ir
e vir, que paro, mas apenas na míngua de um lapso. O tempo passa, o tempo não
passa. O relógio, meu pulso, meu suor, minha calça de quinta-feira, um cisco no
olho, uma guimba, o poste, muros. Em redor, absolutamente, a cidade, sempre e
incansável. Moro no mais tarde, depois das onze. O jantar: requentá-lo; comê-lo.
Na TV, um homem frágil explica taxas e gráficos, coisas que não entendo. No
silêncio, antes de dormir, sei que todos os amanhãs já se foram e que tudo é tão somente o cumprimento de uma rotina. Desligo a TV e me apago. Sono adentro, escutas noutro
radar, ouço a moça estrangeira de um filme já antigo. Na névoa de um sonho,
entrevejo seu olhar: Lauren Bacall, Uma
Aventura na Martinica.
[Na
esquina, um banquinho na calçada.
Todos já sabem: ele não é muito de dormir.
Fuma um pouco, enquanto a noite cavalga.
Toma café, escuta o rádio, acompanha
os que vão e vem.
Ninguém lhe aborrece, nem os bêbados.
Não é triste, não se
queixa, não tem ambições, nunca teve.
Em vez de alegre, leve, que foi o que de
melhor aprendeu.
Telegrafa-me um olhar; gesticula, suave, com a mão. Um amigo.
Irmanamo-nos no anonimato dos que
gastam suas vidas comendo jantares
requentados
e sonhando com Lauren Bacall.
Veio de longe e sempre de longe será,
pois sua força é um tipo de resistência
que se adapta a diferentes geografias.
Aos sábados, mas não só, toca seu clarinete.
De cá, cantando baixo, acompanho O mundo é um moinho.]
.................
NOTAS:
1. Lauren Bacall, atriz norte-americana reconhecida por seu talento, extensa obra e inevitável beleza.
2. O mundo é um moinho, música de Cartola que você escuta aqui: https://youtu.be/.
.........................................................
│Autor: Webston Moura │
___________________________
Amigo Webston, cada vez melhor em prosa e verso: porque, também para mim, Lauren Bacall sempre foi o mundo como moinho: a moer, a moer, a moer vidas em desamores. Parabéns. Abraços.
ResponderExcluirÉ, Pedro, as divas são eternamente poderosas. E as do passado, mitos! Grato pela leitura! Abraços!
Excluir