quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

MANHÃ




Estou
E num breve instante
Sinto tudo
Sinto-me tudo


Deito-me no meu corpo

E despeço-me de mim
Para me encontrar
No próximo olhar.


Ausento-me da morte
não quero nada
eu sou tudo
respiro-me até à exaustão.


Nada me alimenta

porque sou feito de todas as coisas
e adormeço onde tombam a luz e a poeira


A vida (ensinaram-me assim)
deve ser bebida
quando os lábios estiverem já mortos


Educadamente mortos



(1979)




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# Poema constante de RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)
# Originalmente, postado na página Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen (Clique AQUI)

│Autor: Mia Couto
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POEMA DE AMOR




O Céu, as linhas de luz na água, 
caminhos diferentes para o coração. 
A queda de sons diversos na atenta coincidência 
dos ouvidos. A relação de uma límpida tarde 
com um movimento de ombros junto do teu corpo, 
na luminosa sequência da tua voz. 
Um andar divino de transparente espectro 
sobre o fundo de árvores; 
o acentuar da impressão dos teus olhos 
na quente atmosfera estagnada. 
Mas o súbito levantar do vento dissipou 
a primitiva aparência. Um canto lívido 
de mortas recordações apenas subsistiu, 
o indefinido desgosto dos teus braços, 
o remorso de gestos incompletos 
que a memória suspende. 
Nem me espanto já com a tua proximidade. 
Bem vindos, decompostos lábios! 
O ranger da cama sobrepõe-se 
ao ruído das cigarras.



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# Poema constante de POESIA REUNIDA [(1967-2000) Pub. D.Quixote, 2000)]
# Originalmente, publicado na página Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen (Clique AQUI)

│Autor: Nuno Júdice
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sábado, 20 de dezembro de 2014

TAL A UMA ÁRVORE MORTA DE PÉ



“O tolo cruza as suas mãos, e come a sua própria carne.
- Eclesiastes 4:5




São tantas as vozes, mas não lhes há esteio,
exceto por suas próprias sequelas,
ramos ardidos que noutros se repetem,
fastios de cães na noite infinda.

Pedem água e justiça; choram por leis
às quais apregoam bálsamo do mundo,
                                     se bem que não.
São elas mesmas toda a mesmice
que se consegue à força do hábito.

São tantas as vozes, mas uma voz só,
o canto de um bicho que se perdeu,
como a aborrecida beleza de um osso
ou tal a uma árvore morta de pé.


│Autor: Webston Moura│



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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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