quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Invasões caribenhas


Estudos reforçam hipótese de que o mar da América Central inundou trechos da Amazônia ocidental entre 23 e 10 milhões de anos atrás

Desenho feito em meados do século XIX do boto-cor-de-rosa da Amazônia, mamífero aquático cujos ancestrais viriam do mar do Caribe

DEA / Biblioteca Ambrosiana / Getty Images

O boto-cor-de rosa (Inia geoffrensis) povoa o folclore brasileiro e os rios amazônicos deixando a impressão de ser uma espécie que não pertence totalmente ao ambiente que a rodeia. Pesquisas recentes corroboram essa percepção. Os ancestrais do maior golfinho conhecido de água doce seriam originários do Caribe e teriam chegado à região a bordo de incursões do mar da América Central pelo noroeste da Amazônia entre 23 e 5,3 milhões de anos atrás, durante a época geológica denominada Mioceno. Não há consenso sobre a frequência, a duração e a extensão dessas invasões das águas do Atlântico caribenho, que devem ter influenciado a formação da atual fauna e flora amazônica. Um novo estudo defende a hipótese de que essas infiltrações marinhas teriam sido em maior número ou mais intensas do que indica boa parte da literatura científica, uma visão alternativa que começou a ganhar corpo nos últimos cinco anos.

“Consideramos dois cenários possíveis”, explica o palinólogo Carlos D’Apolito Júnior, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), um dos autores de um artigo publicado em agosto de 2021 no periódico científico Global and Planetary Change. “Teria havido três eventos de incursão marinha, em vez dos dois usualmente considerados, ou o segundo teria sido mais duradouro e se espalhado por uma área maior.” Assinam o estudo com D’Apolito a palinóloga Silane Caminha, também da UFMT, e o mestrando Bruno Espinosa, que é orientado por D’Apolito.

A proposta é amparada em dados produzidos a partir da análise de grãos de pólen obtidos de um poço perfurado pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) no município amazonense de Atalaia do Norte, na bacia do rio Solimões, perto da tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. A uma profundidade de 34 metros abaixo da superfície, quase 20% dos 374 microfósseis orgânicos estudados eram provenientes de algas do plâncton marinho, um indício de que a água salina do mar um dia penetrou naquela região. A camada geológica de onde provêm as amostras é a menos profunda da Amazônia em que foram encontradas evidências de seres de origem marinha. Sua idade é estimada entre 11 e 10 milhões de anos atrás.

A descoberta de resquícios de um ambiente marinho dessa idade em uma área hoje tomada pela floresta densa pode indicar que a parte ocidental da Amazônia foi realmente invadida mais do que duas vezes pelo mar do Caribe ou que a segunda incursão se prolongou por mais tempo e atingiu mais áreas. Há razoável consenso de que houve uma primeira incursão, entre 23 e 16 milhões de anos atrás, e uma segunda, entre 16 e 11,6 milhões de anos. Cada um desses dois episódios marcados pela entrada de água marinha teria durado entre 400 e 300 mil anos e criado um ambiente aquático relativamente raso no oeste da Amazônia, segundo estimativa feita em 2017 em um trabalho publicado na Science Advances pelo palinólogo colombiano Carlos Jaramillo, do Instituto de Pesquisa Tropical Smithsonian (STRI), do Panamá.

Carlos D’Apolito Júnior Microfóssil de carapaça orgânica de foraminífero marinho encontrado na Amazônia, evidência de que a região foi invadida por águas oceânicasCarlos D’Apolito Júnior

Nesse estudo, a equipe de Jaramillo analisou sedimentos e amostras de pólen em duas áreas da Amazônia: no leste da região colombiana da bacia do Llanos e na confluência dos rios Amazonas e Solimões. Em ambas, encontrou evidências robustas dessas duas invasões das águas caribenhas (mas não da terceira), incluindo um dente de tubarão e uma lacraia-do-mar. “Estamos tentando entender como as inundações influenciaram o clima da Amazônia ocidental, o tamanho e a direção de seus rios”, comenta, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o pesquisador do Smithsonian. Em artigo publicado em 2020 no Journal of South American Earth Sciences, Caminha, da UFMT, sugere que a área invadida pelas águas do Caribe teria chegado até a bacia do rio Acre, perto da divisa com a Bolívia.

Há alguns milhões de anos, setores da atual grande floresta tropical estavam inseridos em um ecossistema muito diferente. Durante o Mioceno, parte do noroeste da Amazônia era tomada por um grande pântano, o chamado sistema ou lago Pebas, uma área alagada 20 vezes maior do que o atual pantanal mato-grossense que se estendia por terras do Brasil, Peru e Colômbia, algumas delas distantes mil quilômetros do mar. O soerguimento dos Andes criou um amplo espaço rebaixado topograficamente na Amazônia ocidental, onde se formaram pantanais. Há indícios de que o Pebas tinha áreas tanto de água doce como de salobra, uma pista de que havia alguma conexão remota com o oceano.

Compreender a dinâmica das incursões marinhas é fundamental para avançar no conhecimento dos processos históricos que formaram a alta biodiversidade da Amazônia. “Um sistema de pantanais com influência marinha pode ter funcionado por milhões de anos como uma barreira geográfica que contribuiu para o surgimento de novas espécies”, exemplifica D’Apolito. “Ao mesmo tempo, pode ter sido um corredor para o ingresso de novas espécies marinhas, como botos e arraias, e também de plantas.”

Na Amazônia ocidental, como a maior parte das rochas do Mioceno está coberta por floresta densa, as perfurações do subsolo são a fonte primordial para obter e estudar microfósseis que podem ser úteis para reconstituir o passado da região. Esse é justamente o objetivo de um recém-iniciado projeto financiado pela FAPESP, sob a coordenação do geólogo André Sawakuchi, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP). A iniciativa faz parte do Trans-Amazon Drilling Project (TADP), um empreendimento científico internacional que reúne pesquisadores de instituições de 12 países e tem como objetivo realizar perfurações e coletar amostras geológicas em faixa contínua da Amazônia, desde a região dos Andes até a margem atlântica. “Queremos reconstituir a história do clima, das florestas e dos rios da Amazônia ao longo da era Cenozoica, os últimos 65 milhões de anos”, explica Sawakuchi.

Artigos científicos
JARAMILLO, C. et al. Miocene flooding events of western Amazonia. Science Advances. 3 mai. 2017.
DA SILVA CAMINHA, S. A. F. et al. Palynostratigraphy of the Ramon and Solimoes formations in the Acre Basin, Brazil. Journal of South American Earth Sciences. 9 jul. 2020.
ESPINOSA, B. S. et al. Marine influence in western Amazonia during the late Miocene. Global and Planetary Change. 10 ago. 2021.


Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.






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