A cor dos olhos, cabelos e pele dos primeiros habitantes das Américas, que aqui chegaram milhares de anos antes do desembarque de Cristóvão Colombo, no final do século XV, provavelmente seguia o padrão observado nas populações indígenas contemporâneas do continente. A conclusão é de um estudo coordenado por pesquisadores brasileiros, cujos resultados foram divulgados em um artigo científico em junho na revista Forensic Science International: Genetics. A maioria dos membros desses povos nativos das Américas teria olhos castanhos, cabelos pretos e pele morena, de acordo com o trabalho, que analisou material genético de sete indivíduos que viveram entre 11 mil e pouco mais de 500 anos atrás.
A investigação usou oito ferramentas da genética forense para predizer as características físicas visíveis (fenótipos) associadas à pigmentação dos nativos americanos ancestrais e comparou os resultados com a população atual de indígenas do continente. Os dois principais métodos empregados foram HlrisPlex-S e Snipper, que apresentam índices de acerto entre 70% e 90% quando utilizados para determinar a cor da pele, do cabelo e dos olhos em populações atuais de origem europeia. No estudo, foram analisados inicialmente dados de 27 indígenas contemporâneos e de 20 da época pré-colonial. O genoma desses indivíduos foi sequenciado e tornado de domínio público por outros projetos científicos. Do grupo dos indígenas ancestrais, no entanto, apenas sete forneceram informações genéticas com qualidade suficiente para embasar a predição de fenótipos: as amostras de sítios arqueológicos da Groenlândia, estado norte-americano de Nevada (três indivíduos), Argentina, Chile e da região mineira de Lagoa Santa (uma ossada de 10 mil anos).
“A cor da pele, olhos e cabelo não é decorrente da ação de um único gene. Essa é uma característica complexa”, explica o biólogo Celso Teixeira Mendes Junior, do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) e coordenador do estudo. “Muitos genes atuam para determinar o nível de melanina em cada indivíduo.” Melanina é o termo genérico usado para designar um conjunto de pigmentos naturais que dão a tonalidade desses traços físicos. No estudo, foram analisados 61 marcadores genéticos em cada um dos genomas analisados. “Não tivemos indivíduos que fugiram do esperado. Constatamos apenas que indígenas ancestrais apresentavam características um pouco mais homogêneas do que os atuais”, diz Mendes Junior.
Uma das finalidades do estudo, realizado no Laboratório de Pesquisas Forenses e Genômicas da USP em Ribeirão Preto, foi testar ferramentas de predição de fenótipos da população atual para uso na resolução de crimes. Outra motivação foi a busca por mais elementos para fundamentar a reconstrução da história dos primeiros povos que habitaram as Américas. “Queríamos ver se havia diferenças na pigmentação da amostra de indivíduos que compuseram a chamada primeira onda migratória para o continente, há mais de 13 mil anos, e dos nativos americanos atuais, cujos ancestrais diretos estão aqui há pelo menos 6 mil anos”, afirma a bióloga Tábita Hünemeier, do Instituto de Biociências (IB) da USP, coautora do estudo. “Concluímos que não houve grande variação nesse quesito.”
Há variações conhecidas nas medidas craniofaciais entre os grupos que vieram na suposta primeira grande onda e os que entraram mais tarde no continente. Segundo alguns autores, a leva inicial teria dado origem, entre outros, aos indivíduos cujos vestígios foram encontrados em Lagoa Santa e aos integrantes da chamada cultura Clóvis, associada a um conjunto de sítios arqueológicos localizados no Novo México, Estados Unidos. “Todos esses indivíduos, incluindo o povo de Luzia [crânio de 11 mil anos achado em Lagoa Santa], teriam características físicas que não se parecem muito com os indígenas atuais. Eles não teriam, por exemplo, os olhos puxados e outros traços que se assemelham aos da população contemporânea do leste asiático”, afirma a bióloga.
A análise do DNA dos sete nativos ancestrais sugere, no entanto, que não haveria diferenças significativas entre a aparência dos primeiros habitantes das Américas e a dos indígenas de hoje. “Como a reconstituição do rosto de Luzia foi feita de argila, que é escura, muita gente pensa que ela era negra. A pele indígena é mais escura, quando comparada com a dos europeus, mas não é negra, como nosso trabalho indica”, comenta Hünemeier. Os resultados de trabalhos que tentam inferir traços físicos a partir de análises de DNA ancestral são sempre alvo de polêmicas. Segundo um estudo feito em 2012, do qual a pesquisadora da USP é um dos coautores, a maioria dos neandertais – hominídeo extinto há cerca de 30 mil anos – teria olhos castanhos, e não azuis, como supõe boa parte dos estudiosos dessa espécie.
Para a geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que não participou do estudo da USP, os autores fizeram um trabalho muito interessante na medida em que compararam os resultados de mais de um modelo de predição de fenótipos entre populações ancestrais e atuais de indígenas das Américas. “Isso é de uma importância muito grande para a genética forense, que busca ferramentas confiáveis de uso mais universal nessa área”, diz Bortolini. Desenvolvidos por pesquisadores europeus, os modelos HlrisPlex-S e Snipper apresentaram, entre as populações contemporâneas, certa dificuldade em classificar fenótipos considerados intermediários, como olhos verdes ou cor de mel ou tonalidades de pele entre a branca e a negra.
_____________________________
Projeto
Sequenciamento de nova geração das regiões regulatórias e exônicas de 10 genes envolvidos na biossíntese de melanina em amostra da população brasileira (nº 13/15447-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Celso Teixeira Mendes Junior (USP); Investimento R$ 338.531,88.
Artigo científico
CARRATO, T. M. T. et al. Insights on hair, skin and eye color of ancient and contemporary Native Americans. Forensic Science International: Genetics. 11 jun. 2020.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Caso queira, comente!