sábado, 21 de maio de 2016

PARA QUE FECHES OS OLHOS



Escrevia contos e os guardava. Tinha um sonho recorrente: após dois copos de vinho, dirigia um carro numa estrada deserta e no passado, 1976. No toca-fitas, ouvia: tua presença é uma gota de orvalho que o sol evapora. E a estrada não se acabava; parte por parte, as linhas do meio dividindo a pista, sequência repetida, mas não enfadonha. Lembrava, mas não sabia o porquê de chamar de lembrança a isto: Fechar os olhos. Ouvir as sibilas (descobri-las), como quem, relva sob relva, solo sob solo, desencava o canto, aquele da súmula dos olhares. O vinho, o motor discreto, a noite, ninguém na estrada, viajar, 1976. Escrevia contos. Havia um sobre uma cidade perdida, um lugar mais para a lenda que para a história. Nunca o terminava. Não era a intenção. A travessia, sim, o era. Sempre estar ali com aquela estória, pesquisar em diferentes fontes e conseguir detalhes que pudesse incorporar ao relato. No meio da madrugada, parar e ficar olhando o calhamaço de folhas preenchidas, silêncio. Da janela, a nudez que da rua se expunha. A cidade, o vazio. Gostava daquilo. Ausência e nostalgia. Duração.



[Para ler, ilha que se encontra num fechar
de olhos, selos espalhados sobre a cama,
escaninhos raros, traz à mão o trotar
de raros cavalos e, tons acima,
areias brancas de uma praia
jamais encontrada senão por secretos alfabetos.]






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NOTAS:
1. A citação "Tua presença é uma gota de orvalho que o sol evapora" trata-se do primeiro verso de "Tua Presença", composição de Maurício Duboc e Carlos Cola.
2. O mais, posto em itálico, são trechos de outros escritos do Webston Moura.
3. Em 1976, que houve?

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│Autor: Webston Moura
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sexta-feira, 20 de maio de 2016

RESTAR ÍNTEGRO

Em seu perfeito estado,
um círculo.




Pôr-se ausente a pino,
desmundar-se.
Habitar a penúria,
o zero da cabeça.
Silenciar, escutar
e retornar à primeira água.
Caso um peixe borbulhe sua sentença,
deixa-lo ser: seu reflexo desparecerá.

Na pausa, nada inibir.
Respirar o vago, o limpo, o livre.

Esvaziar-se.

Restar íntegro
e deserto:
abrir-se à luz.


│Autor: Webston Moura
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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Deita-te comigo

Deita-te comigo.
É tão longa a noite.
Apagaram-se os brilhos
do tecto do dia claro,
ficou a iridescência nas
vidraças dos teus olhos
que bebo ou recuso.

A casa respira o sussurrar
das águas, se quiseres, ou
silencia e abafa todos os gritos
da solidão partilhada.

Ao alcance do teu gesto fico,
nascente, leito ou deserto.
Por ti me farei cascata ondulante
ou, como barro, me unirei
às reentrâncias absurdas das águas.



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# Poema constante de "Evocação das águas" (Seda Publicações, 2015), com desenhos de Carmo Pólvora.

Lília Tavares (1961)  é psicóloga clínica, há 24 anos a trabalhar na reabilitação de jovens e adultos. Casada e mãe de dois filhos, frestas de luz que a vida lhe deu. Unida à Poesia desde os treze anos, publicou em 1979 Fusão Crepuscular e outros Poemas em edição de autor. Participou, a convite, numa antologia de poetas do Baixo Alentejo, dois anos mais tarde. Natural de Sines, traz consigo o aroma das marés vivas de Setembro. De extremos, ama o aroma das terras, o sol, as alfazemas em Junho. Criadora e co-autora da Página "Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen", Lília é co-autora da Página "Poesia com Artes" e, neste âmbito, realiza  Encontros de Poesia e Artes em Oeiras. Tem criado eventos, prefaciado,  participado e/ou apresentado diversos livros de poesia de outros autores. Participou com outros onze autores em Rio de Doze Águas(Coisas de Ler, 2012), antologia prefaciada por Joaquim Pessoa. Publicou Parto com os Ventos (Kreamus, 2013), prefaciado por Carlos Eduardo Leal, RJ, e ilustrado com esculturas de arame de Simone Grecco, SP. Ama as pequenas coisas. Prende o olhar numa lágrima, num amigo, numa estrela.