sexta-feira, 7 de agosto de 2020

SIMPLESMENTE



Horseman Palimpsest - Walter Battiss




Você,
que os outros não notam,
anda por aí, nos ares,
de árvore em árvore
e no aonde o obscuro se fecunda.
 
Você,
pardal livre, suave e jovial,
anda por aí, longe desse ruge-ruge de más notícias
e de tudo o mais que fabrica ilusões.
 
Você,
rocha, mar, madeira da janela,
céu avermelhado de poente,
caco de coisa vã, asa e café,
anda por aí e faz-se liberdade
quando nem se presta a pensar nisso,
mas apenas em estar por aí,
estação de trem, pedaço de poema,
o que acontece, simplesmente.

 

│Autor: Webston Moura│





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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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sábado, 11 de abril de 2020

Um Passeio de Canoa





O que havia do outro lado do rio? As chuvas engordavam de águas aquilo tudo, o rio fazia-se majestoso, feroz, escuro, vinha de longe e para mais longe se ia. E do outro lado, que casas eram aquelas e quem ali vivia? Não era de todo que não sabia, claro, já que alheamento completo era impossível. Mas, ali, casas distantes, mas a vista, com gente que ia a vinha, já não era a cidade, era outra coisa, o desconhecido.

Por vezes, ficava eu à beira do rio, em segurança, claro. Observava as canoas e seus condutores, os quais usavam, a princípio, enormes varas para navegar. Eles tocavam o fundo e tomavam impulso. Depois, com o rio muito cheio, já não alcançavam o fundura do leito, lá embaixo e, então, trocavam as varas por remos. As canoas levavam gente e mercadorias, algum animal menor, cães, carneiros, algo assim. Os remadores davam contra a corrente, formando quase um meio círculo nas águas, evitando a força maior do rio. Chegavam ao outro lado, cansados, e ali deixavam as pessoas e seus pertences. Em tempos de muita chuva, quando o rio transbordava para o lado de lá, os baixios sucumbiam mais cedo e parte das casas ficava com água quase no telhado. Para onde iam as famílias?

Alfabetização





Os nomes das coisas, a possibilidade de classificá-las, distinguindo-as a partir de suas características próprias, e, de alguma forma, colecioná-las, dispô-las em conjunto, delas apossar-se, tê-las, guardá-las. Os nomes de tudo, mas não apenas de se saber falar, sonorizar, mas de se assentar num papel, num caderno, retendo, riqueza que se possui, embora não se possa trocar por comida ou outro bem, nem oferecer, tal pedaço de bolo, a um amigo ou irmão. Buscar a parte que nos cabe no mundo, alfabetizar-se, adentrar os domínios da língua e da linguagem e, deste modo, subir, crescer, evoluir, tornar-se alguém.

A cartilha era a ferramenta que dispunha da seguinte estratégia: para cada letra, a associação a um bicho. “A” de abelha, uma abelha cuja figura era de uma só asa, curiosa e mágica. E as outras letras, os outros bichos, mais de vinte. Para uma criança, uma imensidão de novidades dada como brincadeira. A professora, de nome agora injustamente esquecido, era a condutora da aventura. Jovem, enérgica, mas terna, sabia que éramos crianças, não meros ignorantes. E nos ensinava com o melhor que podia.

Ao voltar para casa, a pé, amiguinhos lado a lado, todos falávamos, uns mais ávidos, outros mais de escuta. E, ao passar por um cachorro, já imaginávamos assentá-lo num papel, no caderno, o nome dele, não ele mesmo, claro. Mas ainda não sabíamos como exatamente fazer isto. Uma casa, uma árvore, uma bicicleta, o nome ainda obscuro de algum letreiro, a inscrição nalgum veículo... Agora era questão de tempo.

A mãe era a nossa segunda professora, menos preparada em conhecimentos e mais ansiosa de que soubéssemos ler e escrever. Dava-nos a lição de casa, percorrer a cartilha, cobrir letras a lápis em cadernos de caligrafia, contornando-lhes o desenho, uma curva aqui, uma reta ali, uma palavra que se formava, tijolinho por tijolinho, as sílabas e suas famílias. Iam-se os dias.

Lembro-me de quando acabou-se a estória da cartilha, cumpridas todas as letras e todos os bichos. Não compreendi. Pedi a professora que continuasse a aventura. Ela, com um sorriso, disse-me já haver terminado. Continuei não compreendendo e, dada a chacota que os coleguinhas fizeram, achei melhor aquietar-me e aceitar. Depois, claro, com o tempo, soube ser apenas uma estratégia aquela coisa de letras e bichos. E que o que importava era ter penetrado e desvendado o mundo da escrita e da leitura, podendo agora ser gente, como diziam os mais velhos. Cachorro, árvore, nome de pessoa, de estrela, de coisa ordinária ou rara, agora de tudo eu podia assentar na rudeza daquele caderno barato.


│Autor: Webston Moura│



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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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terça-feira, 31 de março de 2020

"As árvores finalmente despertam"






As árvores finalmente despertam.
Uma claridade nova rodeia já
a ameixoeira vestida de noiva
e as trovas em seus ramos
não tardarão a arrancar-nos das mãos
a insensibilidade fria do inverno.
Seremos então, amor, um rumor
alegre de água, a correr
no lugar das mágoas que já não são.
E falaremos de nós deslumbrados
apenas porque
uma brisa de março
subitamente nos tange o coração.


│LÍDIA BORGES, in GARÇAS (Poética, 2019)
│Ilustração ©Gemma Capdevila

domingo, 29 de março de 2020

CORAÇÃO DA ÁGUA





Ninguém sabe onde está
o coração da água
Volátil, incerto e sem costura

da condição da chuva
das lágrimas vorazes
Com nós de avidez e de sutura

de limpidez, de orvalho e no seu rasto
sequioso, incauto e inconstante
Tão lívido Tão pálido Tão exausto



│MARIA TERESA HORTA, in ESTRANHEZAS (D. Quixote, 2018)
│Fotografia: Beneath The Sea, de Martha Suherman

sexta-feira, 27 de março de 2020

REMANSO



Summer #3 - Richards Ruben


Não o tumulto de idas e vindas,
nada de encontros, nada.
Apenas a areia branca, despoluída,
o ar sereno, os pássaros bailando.
Onde se divisa um barco, ilusão:
ao longe, os fantasmas nascem.
Onde o som de uma voz, a impressão,
nada mais que isto, nem o que se imagine.
E as cores soltas se cruzando,
conforme o sol se repete no espaço.

Dia, noite, dia, noite...
Sabe lá o que é não precisar de relógio.



│Autor: Webston Moura│

A FÚRIA


Composition - Huguette Arthur Bertrand



A vida um tanto interditada:
muita novidade e pouca substância.
Os dias rolando, as coisas acontecendo,
tudo se enredando e caindo num fosso de esquecimento.

Olho ao espelho, certo dia, e me surpreendo
destes anos velozes, anos moídos sob agressiva luz,
anos em que tanto estive e, simultaneamente, não estive
aqui.

Há esta fúria que nos consome,
como algo que parece nem estar acontecendo.



│Autor: Webston Moura│


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Webston Moura
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quinta-feira, 26 de março de 2020

INOCENTE



Untitled - Albert Oehlen



Teu nome,
o meu,
ali,
aos poucos,
desenho feliz,
que pousamos
no eterno.

Derrubaram a árvore
e construíram uma locadora.
E agora, depois de umas dez utilidades,
só o pequeno prédio fechado,
cadeado, corrente, escuro, silêncio.

Dá-me vontade, sabe, de compra-lo
e derrubar tudo; fazer voltar o vazio
e, nele, plantar outra árvore, uma muda,
esperar crescer e, novamente, pousar nossos nomes.

Sei, é loucura isso.
Mas, sabe, dá-me vontade exatamente disso,
de ter toda coragem que temos quando jovens
e aquela sensação de que nada nos deterá,
de que toda revolução, do amor ao mais, é possível
e que tudo depende apenas de dar um passo a frente.

Dá-me vontade de ser inocente, de novo.



│Autor: Webston Moura│

A Porta Que Não Se Abre



Untitled - Hassan Massoudy



A porta que não se abre,
use-se de sabedoria alta ou popular;
use-se de força ou jeito.
A porta que não se abre,
como a presença mais incômoda,
mais que areia nos olhos;
mais que o mais imaginável obstáculo.

Ou seria tudo exagero,
vício do olhar,
máquina boba de um repetir-se,
canto alongado e perdido diante da parede?



|Autor: Webston Moura|



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sábado, 21 de março de 2020

ESTAÇÃO VIDA




As ruas vazias.
Novamente, pode-se ouvir o vento
e a naturalidade de tudo o mais
que foi exilado pela nossa ruidosa presença.

Das janelas, uma alegria misturada com uma tristeza
e uma espancada esperança que se tenta segurar às mãos.

Diz-se que amanhã é (será) outro dia,
mas sabe-se que ainda há uma dor a ser percorrida.

É irônico que estejamos nisso tão juntos,
mas não possamos sequer apertar as mãos uns dos outros.

Entrincheirados, tentamos nos proteger do inimigo,
esta coisa invisível, silenciosa e disciplinada.



│Autor: Webston Moura│