quarta-feira, 7 de novembro de 2018

O RIO QUANDO O SABÍAMOS


Não vá para o fundo, dizia a mãe.
O rio, que passava dentro da cidade,
nem estava tão cheio, pois era o tempo de estio.
Mas, continha água suficiente para nós,
pequenos aventureiros de cada manhã.

Íamos, mas não no perigo.
Exceto uns, por vocação de desobedecer,
atreviam-se e subiam em árvores à beira do rio,
na parte em que havia poços, diziam, água escura, funda.
Pulavam e faziam algazarra, mergulhavam, eram ágeis.
De longe, nós, os mais quietos, não os invejamos.
Gastávamos o tempo no fazer-nada que a água dá,
além de buscarmos, aqui e ali, piabas e outros bichinhos.

Do outro lado do rio, uma comunidade,
gente ainda mais pobre, sem luz elétrica,
sem água encanada, sem filtros de barro,
enfim, com muitas ausências,
mas sem graves tristezas.
Sorriam para nós enquanto passavam.

Sempre olhávamos o sentido da corrente,
para onde o rio se findava nalguma curva.
Que outros povos encontrava?
Que outras histórias percorria?

Disso tudo,
o rio interno que carregamos espelhado naquele,
águas que se foram e que voltaram
quando não estávamos mais lá.

Hoje,
perdendo tempo enquanto podem,
há crianças no rio,
naquele
ou no que dele restou?


│Autor: Webston Moura│

PEQUENA HISTÓRIA PARA ESPÍRITOS INFANTIS


Fomos buscar um não-sei-quê no mato, atrás da casa.
Já era noite, cedo ainda, mas noite,
o que, para crianças que éramos, irmãos pequenos,
havia de ter algum mistério.
Nosso pai nos levou, meio que subitamente,
como alguém que sabe, por experiência,
que crianças assuntam uma qualquer aventura,
ainda mais se é pela mão do pai,
num tempo onde pai era tudo.

Nada vimos, além da noite,
a escuridão, ela mesma o mistério:
paisagem ora parda, ora cinza;
pássaros no esconso, grilos e estrelas.

Concluímos, por uma razão de criança,
de o inusitado ter sido o pai
e seus comandos a nós,
uma fila indiana seguindo uma trilha,
acreditando desbravar algum eldorado
ou expulsar seres imaginados só por nossos extremos.
Fizemos, contra a rotina,
nossa pequena história de um pedaço de noite
que se vai perdido, exceto por este relato.


│Autor: Webston Moura│

SONHOS

http://www.projetopassofundo.com.br/




Alguns sonham o momento
                         o passado
                         o futuro

     alguns sonham o instante
                  em fulgurantes astros
                  cadentes em nuvens

alguns sonham a volta
                         na revolta
                         do mar revolto
                         amainado em brisas

alguns sonham a verdade
                             no espaço
                             das desculpas

alguns sonham que são felizes
                            e se realizam
                               ao acordar.

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DREAMS

Some dream about the moment
                                 the past
                                 the future

    some dream about the instant
               in flashing stars
               shooting in clouds

some dream about the return
                              in the revolt
                              of the rough sea
                              fallen in breezes

some dream about the truth
                             in the space
                             of apologies

some dream that they are happy
                           and it takes place
                                   upon waking.

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Poema do livro Imagem & Reflexo, de Pedro du Bois e Marina Du Bois (tradutora dos poemas para a língua inglesa), Projeto Passo Fundo, 2018 [http://www.projetopassofundo.com.br/]. Pedro De Bois mantém o seguinte blog: http://pedrodubois.blogspot.com/.

Para ler outros poemas do Pedro neste blog, clique [aqui].

ENTRELAÇOS – CRÔNICAS EPISTOLARES, de Tânia Du Bois



http://www.projetopassofundo.com.br/



Buscar papel, ausentar-se do mundo, trancar-se num quarto, escrever uma carta, mas não de uma vez só. No decorrer de dias, escrevê-la, percorrendo lembranças, intimidades, emoções, palavras mais em conta, alguma surpresa (ou novidade) a ser posta no papel. Envelopar, ir aos Correios, tomar a fila, esperar, concluir o ritual de quem, ansioso e alegre, se comunica, à distância, com um outro, pensamento firme e leve, sorriso em silêncio, cumplicidade. Já fiz isto. Num tempo em que havia menos crimes e mais confiança entre as pessoas; num tempo onde se utilizava fichas telefônicas e orelhões, já fiz isto. E também gostava, claro, de receber cartas. Detalhe: carta não é encomenda, mas sentimento, confissão, amizade, intimidade, conversa especial que não mais, ou muito pouco, existe. E também receber cartas, abrir envelopes, sentir seus cheiros, desembrulhar os papéis de diferentes cores, encontrar alguém, já o fi. Depois, com carinho, redobrar os papéis, recolocar nos envelopes, se não muito estragados ao serem abertos, e guardar tudo numa caixa especial, esta colocada num lugar também de afeto. Relê-las? Sim, como quem reencontra o outro, para reavivar algo, instantaneamente, e, se possível, fazer demorar, demorar-se ali, silenciosamente, tempo estendido. Durante os anos, revê-las, mesmo que só imaginando-as, sabendo-as guardadas dos outros, como um segredo entre duas pessoas que, talvez, já não mais se falem, um amor despedaçado, uma amizade desfeita, mas, de algum modo, guardado ainda intacto, seja memória de um tempo, de um ano, um verão, um inverno, uma viagem, uma música (“a nossa música’, pensava-se com terna condescendência). Camadas de vida, história. É disso que se trata o Entrelaços – crônicas epistolares, de Tânia Du Bois, Projeto Passo Fundo. Ou, ao menos, foi como me tocou o livro. E eu, que por fraqueza e comodismo deixei de escrever cartas, reacendo-me com suas histórias, detalhes, vidas entrelaçadas que ali me estão à mão, para que eu também, de alguma forma entrelaçado na trama, saiba-me vivo, apesar dos dias turbulentos que todos vivenciamos.

SERVIÇO:
Entrelaços - crônicas epistolares
Tânia Du Bois
Projeto Passo Fundo

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

PRESSAS E ATRASOS


Na rodoviária,
o ninguém da multidão
indo e vindo,
sem nome,
só rostos
e coisas de carregar.

O nome do bêbado
(na mesma calçada),
caso o tenham dito,
nem se sabe mais:
o trânsito
(este dever,
esta sensação)
não nos deixa saber
nada além
de seu usufruto:
ir e vir, ser útil,
pagar e agradecer.

Na rodoviária,
um atraso
é um tipo de sorte:
uma senhora
de Tangará da Serra
conta-me
de filhos e viagens,
mostra-me a foto
do marido sumido
na Serra Pelada,
diz-me de uma ida
à Caiena, na Guiana,
e outras miudezas destas
que fazem a vida
valer pressas e atrasos.


│Autor: Webston Moura│

Bagagem




Message (Mensaje) (1967) Mathias Goeritz




Esta bagagem
de miúdas solidões
que me pesam as palavras
e,
às vezes,
as impedem,
barrando-as,
fazendo-me engolir o cotidiano.

Esta bagagem
que não posso,
por acaso,
esquecer
na porta de uma lanchonete
ou sobre um banco de praça.

Esta bagagem,
os anos,
a luz e os obscuros nascidos disto,
sonhos ora calmos, ora aturdidos
com que me observo,
observando o mundo.


│Autor: Webston Moura│


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Leia outros poemas do autor:


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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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quarta-feira, 1 de agosto de 2018

DESENCONTRO


Da casa, o pó sobre tudo,
o tempo passou.
Aqueles dias não existem mais,
exceto como lembrança e mágoa,
alguma doçura, ilusões.

Na praça em frente,
refeita de cal e pedras novas,
outras crianças gritam e correm
─ e isso é o que dói.

A cidade,
transmutada de progresso hostil,
guarda pouca alegria e quase nenhum aconchego.
As pessoas, desconhecidas, correm
e pouco resta do que já houve.

Outra estação chega,
o inverno,
onde a luz se esconde
e os fantasmas,
revigorados,
hão de reviver com mais força.


│Autor: Webston Moura│

BLIMUNDA Nº 74 – JULHO/2018


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segunda-feira, 30 de julho de 2018

CAJARANAS ROUBADAS


Éramos amigos, éramos crianças.
Ainda não existiam os interesses,
essas coisas de homens adultos,
todas essas importâncias
com que lutamos
(uns com os outros)
até a morte.

Éramos crianças na praça,
sem horas terrivelmente marcadas,
sem levar às mãos às partes sofridas do corpo,
sem outros medos que não os do pai.

Nós nos entendíamos,
tu e eu,
mesmo nas discórdias,
que até essas eram nobres.
Nós nos entendíamos,
tu e eu,
com o rosto sujo,
o riso fácil
e cajaranas roubadas de outro quintal.


│Autor: Webston Moura│

TRIPLOV




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sábado, 28 de julho de 2018

ABDUZIDOS




Symphony in Grey anda Green: The Ocean (1866-1872)
- James McNeill Whistler




Objeto de sentir inteiro,
ver o mar é pouco.
Mesmo de olhos fechados,
o som, o vento e os cheiros
nos abduzem.

Ali na praia,
ainda que seguros na areia
e nas constatações da física,
somos viajantes.

O mar nos desperta
para o passado já esquecido
e nos devolve,
inebriados,
ao Todo
─ ou à ilusão bendita Dele.



│Poema da Série “Mar” – Autor: Webston Moura│