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Auschwitz |
"Não sei se há no mundo alguma palavra com
a mesma ressonância, mas Auschwitz representa, de alguma forma, a quinta
essência do terror no Século XX. Sei que os judeus não gostam que se fale de
Auschwitz, nem sequer aceitam sem polémica as diferentes versões ou reflexões
que esta monstruosidade gerou em criadores ou pensadores judeus, mas não
participo nesta espécie de sentimento religioso que impede que se pronuncie um nome,
seja o de Deus, seja o do horror. Não: todas as palavras, incluindo as mais
dilacerantes, podem e devem ser ditas e pensadas. Auschwitz pertence à
humanidade doente, os que ali morreram eram nossos semelhantes, é igual que
fossem judeus, ciganos, homossexuais ou comunistas, todos foram assassinados
porque houve quem se tenha sentido superior e não tenha querido aceitar o
diferente. Esta é a maior atrocidade, que haja quem esteja disposto a
assassinar, a eliminar, para impor o seu cânone, a sua lei, a sua norma. E
repara que a tragédia não acabou com o final da II Guerra e a manifestação, em
toda a sua crueldade, da magnitude do horror: Hoje mesmo, em África, que está
tão próxima de minha casa, na América também, estão a produzir-se episódios de
eliminação sistemática do outro. É-me igual que seja em câmaras de gás ou pela
fome ou epidemias, cuja origem não se conhece e cujo remédio está ao alcance de
qualquer laboratório farmacêutico. Auschwitz não está fechado, continua aberto
e as suas chaminés continuam a soltar o fumo do crime que todos os dias se
perpetra contra a humanidade mais débil. E posso assegurar-te que não quero ser
cúmplice, com o meu cómodo silêncio, de nenhuma fogueira."
José Saramago, in "Conversaciones con
Saramago", de Jorge Halperín
Fonte: Fanpage da Fundação José Saramago: