Tínhamos um pé de maxixe e um cavalo chamado Tempestade.
Antes de nós ele havia se chamado Trovão.
Comíamos pirão uma ou duas vezes por semana.
E colhíamos goiabas na varanda.
Tínhamos uma rede alvinegra.
Um lugar onde acendíamos fogueira quase todos os dias.
Uma cadela chamada Paçoca.
E um céu cheio de estrelas pairando sobre nós.
Tínhamos um rio que dormia e acordava ante nossos olhos.
E uma pequena cobra coral de estimação.
Brincávamos com as palhas dos milhos juninos.
Fazendo toda a família do Visconde de Sabugosa.
Uma vez ao ano seu Toróró nos trazia jabuticabas colhidas no terreiro.
E líamos muito. Líamos livros e folhas de plantas.
Estávamos cercados por juremas.
Fomos alguma vez a Cordisburgo.
E a tantos outros lugares que parece que não fizemos outra coisa senão viajar.
Assávamos carne aos fins de semana.
Nos divertíamos no balneário da Pitanga.
Íamos à praia do Montecristo sempre.
E éramos vistos muitas vezes nas Cabaceiras do Paraguaçu.
Depois adotamos João e não pararam mais de nascer cães em nossa casa.
Ganhamos uma gata de nome Judite que sempre recebia visitas de um gato que chamamos Anônimo.
Judite passou três dias debaixo da cama.
Não saia nem para comer.
Até que decidiu ficar e nunca mais voltou para debaixo da cama.
Depois veio a Pina, o Garfield e o Dino.
Seguíamos comendo maxixes e sonhando.
Seguíamos comendo pirão e sonhando.
Até que veio Ian, a cigana e tudo o mais que já sabemos.
Até que veio Larissa, Assucena e todas essas janelas que se abriram.
Ontem teve eclipse.
Eliana cobriu-se por alguns instantes com o véu das sombras.
Fiquei olhando como quem olha um espelho maravilhoso.
E vi novos maxixes nascendo entre as orelhas de Tempestade.
E vi cada uma das mil chuvas viradas que enchiam nossa casa de água.
E vi você caminhando entre pedrinhas amarelas e galáxias desconhecidas.
Uma onça te guiava entre despenhadeiros e montanhas.
Fiquei olhando como quem olha uma caverna.
E vi você ninando Assucena com as histórias do jaguar encantado.
Depois veio a Cristalina, o Come-e-Dorme e o Waldick.
Depois veio o Calabouço, o Álbum de família e o Dicionário.
E pouco antes do sol nascer essa infância foi se encarnando em letras azuis no papel.
nuno g.
Toróró, 18/09/24
|nuno g. é Nuno Gonçalves, historiador, professor e poeta. Seu blog é a Insensata Nau: https://insensatanau.blogspot.com/
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Webston Moura, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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