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sexta-feira, 27 de setembro de 2024

infância



para Maria Alice,



Tínhamos um pé de maxixe e um cavalo chamado Tempestade.
Antes de nós ele havia se chamado Trovão.
Comíamos pirão uma ou duas vezes por semana.
E colhíamos goiabas na varanda.
Tínhamos uma rede alvinegra.
Um lugar onde acendíamos fogueira quase todos os dias.
Uma cadela chamada Paçoca.
E um céu cheio de estrelas pairando sobre nós.
Tínhamos um rio que dormia e acordava ante nossos olhos.
E uma pequena cobra coral de estimação.
Brincávamos com as palhas dos milhos juninos.
Fazendo toda a família do Visconde de Sabugosa.
Uma vez ao ano seu Toróró nos trazia jabuticabas colhidas no terreiro.
E líamos muito. Líamos livros e folhas de plantas.
Estávamos cercados por juremas.
Fomos alguma vez a Cordisburgo.
E a tantos outros lugares que parece que não fizemos outra coisa senão viajar.
Assávamos carne aos fins de semana.
Nos divertíamos no balneário da Pitanga.
Íamos à praia do Montecristo sempre.
E éramos vistos muitas vezes nas Cabaceiras do Paraguaçu.
Depois adotamos João e não pararam mais de nascer cães em nossa casa.
Ganhamos uma gata de nome Judite que sempre recebia visitas de um gato que chamamos Anônimo.
Judite passou três dias debaixo da cama.
Não saia nem para comer.
Até que decidiu ficar e nunca mais voltou para debaixo da cama.
Depois veio a Pina, o Garfield e o Dino.
Seguíamos comendo maxixes e sonhando.
Seguíamos comendo pirão e sonhando.
Até que veio Ian, a cigana e tudo o mais que já sabemos.
Até que veio Larissa, Assucena e todas essas janelas que se abriram.
Ontem teve eclipse.
Eliana cobriu-se por alguns instantes com o véu das sombras.
Fiquei olhando como quem olha um espelho maravilhoso.
E vi novos maxixes nascendo entre as orelhas de Tempestade.
E vi cada uma das mil chuvas viradas que enchiam nossa casa de água.
E vi você caminhando entre pedrinhas amarelas e galáxias desconhecidas.
Uma onça te guiava entre despenhadeiros e montanhas.
Fiquei olhando como quem olha uma caverna.
E vi você ninando Assucena com as histórias do jaguar encantado.
Depois veio a Cristalina, o Come-e-Dorme e o Waldick.
Depois veio o Calabouço, o Álbum de família e o Dicionário.
E pouco antes do sol nascer essa infância foi se encarnando em letras azuis no papel.

nuno g.

Toróró, 18/09/24


|nuno g. é Nuno Gonçalves, historiador, professor e poeta. Seu blog é a Insensata Nau: https://insensatanau.blogspot.com/


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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ode à Cachoeira



Existem cidades que são somente cidades

Lugares onde as pessoas vivem
Outras cidades são prólogos, prefácios, pequenos pressentimentos
Existem cidades que são somente lugares
Onde as pessoas vêm e vão
Como as algas marinhas
Ao sabor das marés
Outras são como oráculos encravados à flor da terra
Nos recordando quem somos, de onde viemos e para onde vamos
Existem cidades que são feitas de fogo e água
Nelas não habita o acaso
As esquinas gritam e sussurram a depender de coisas que nos escapam
Existem cidades que são somente cidades
Onde os sonâmbulos caminham
Outras acendem escuros e abrem túneis debaixo da crosta do corpo
Existem cidades que são só passagem
Outras são ancoradouro de rios e galáxias
Existem cidades onde tudo é espera
Lugares onde tudo que acontece recorda a presença do Nada
Outras são todas elas presságio
Reminiscências do mistério que nos acompanha desde o berço
E memória profunda da morte que nos aguarda.

nuno g.
Toróró, 12 de novembro de 2023.


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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

voto de pobreza - a mala.



Raimundo era padre, vivia em Minas.
Todos os anos vinha nos visitar.
Minha avó, sua cunhada, cozinhava doce de ameixa.
Comíamos com banana batida a garfo.
Ele me ensinou a ler e escrever cartas.
E a olhar as estrelas depois do jantar.
Era o único em que ele e o irmão, meu avô, coincidiam.
Os dois olhavam estrelas após a janta.
Todos os anos Raimundo trazia uma velha mala.
Voltava sempre com uma nova, presente familiar.
No outro ano regressava com uma mala ainda mais velha.
Raimundo morreu atropelado.
E até hoje espero religiosamente suas cartas.



│Poema de Nuno Gonçalves.
│Do blog Insensata Nau: http://insensatanau.blogspot.com/