quarta-feira, 26 de abril de 2017

O Cão



Dog - Agostino Carracci




Sempre, a partir das três, este cão me aparece.
Olha pela porta de vidro, faz sinal, ladra.
Dou-lhe alguma comida e água.
Ele come, bebe, demora-se um pouco e some.
Nunca soube para onde vai quando vira a esquina.
Do que me acontece, o fato sem rumo é apenas este,
o cão cujo nome ou origem não sei, nunca soube.

Dou de imaginar uma casa de onde ele foge
e vem desordenar, ao menos um pouco, minha rotina.
Este cão é a interrogação a que me obrigo pensar,
a pedra no sapato de meu pequeno reino de ordem e paz.
É o que me desestrutura e me põe no meio do inesperado,
como se uma pluma me tomasse as rédeas da razão e saísse ao vento.

Virá o dia em que ele desparecerá da minha vida.
Aí, que farei da hora vazia diante da porta?



│Poema da Série "Incidentes" – Autor: Webston Moura│

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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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O RELÓGIO



Guardo o relógio desde que aqui vim morar.
Curioso tê-lo encontrado dentro de uma das paredes.
A caixa de madeira, um entalhe com as iniciais ST na tampa.
Objeto antigo, mas nem tanto, ainda funciona.
Não quis tentar devolvê-lo, reconheço.
Talvez, acredito, para ter um mistério e não um roubo.
Depois de doze anos, continuo a perguntar sobre.
Inventei, para meu próprio gozo, possibilidades.
Mas nunca fui mais adiante em qualquer investigação.

Este relógio é o meu segredo obscuro,
aquela dose de fantasia a que imaginativas pessoas se dedicam.
Fora de toda previsibilidade, é a circunstância que não dirijo.
Caso casual, apesar dos doze anos, marca as horas em que aconteço fora do mundo.
E eu sempre hei de viajar.


│Poema da Série “Incidentes” – Autor: Webston Moura│

segunda-feira, 24 de abril de 2017

IMAGEM SOBRE O ESCURO

Este homem sorridente da foto está vivo,
mas apenas nisto, imagem e canção.
Por nossa lembrança, que o sol amarela,
sobrevive este homem, cantado em nossa voz
e conversado em nossas horas, história que se estende.

Parece ser que o maior das existências seja isto,
imaginar e sentir mais que tudo,
memória e força que o coração tange.

E assim diz-se passar a vida,
mais ainda, vive-la mesmo,
imagem sobre um escuro que desconhecemos.


│Poema da Série “Tempo e Vida” – Autor: Webston Moura│

UMA CONCHA NAS MÃOS

Vais à praia?
Encontrarás um objeto calcificado cheirando a ontem.
Toma-o, pois, à mão e compreende que estás nele e ele em ti,
emaranhados os dois de tempo na matéria que se transforma.

Não penses muito, rapaz, que não és velho.
Deixa que os anos além emprenhem a demora necessária.
Corre na areia, segue, busca o sol e olha a beleza.
Descansa tua cabeça de tanta história e lembra-te do momento.
Nunca mais verás o dia, este, tão erguido como agora.
E a isto, o dia real e único, é que deves chamar de milagre.


│Poema da Série “Tempo e Vida” – Autor: Webston Moura│

DE BRANCO E AZUL

Há um barco vazio na praia,
com um vestido branco e azul dentro.
Nenhum objeto mais ou indício de haver gente viva se acha.

Dão-se os homens em investigações,
suposições, palpites e até invenções.
Querem a verdade do que teria havido,
mas nada de oficial sobre sumiços e naufrágios se noticia.

Correrão dias e dias, lendas surgirão de cada canto.
Deseja-se dar sentido a um vestido branco e azul,
peça que algum dia, deduz-se, vestiu a moça sem nome.

Envelhecerão todos sempre a lembrar
de como incomoda este dia, este barco
e o vestido vazio, tempo descolado da linha.

Inquieta a vida correndo invisível e obscura no tempo,
o rosto e a história da moça sem nome vestida de branco e azul.


│Poema da Série “Tempo e Vida” – Autor: Webston Moura│

terça-feira, 28 de março de 2017

PALAVRA

Não tenho outras palavras,
exceto estas,  gastas, que trago no costume.
Sei, entretanto, poder renová-las desde seu cerne,
como dizer calçada e ver o caminhar dos transeuntes,
os sentimentos todos atravessando as horas.

Palavra é meio, transito, panela onde se coze,
cadeira onde se senta, até a interjeição no cartaz que pede Silêncio!
na emergência de um hospital, lugar onde as palavras doem,
ainda que envolvidas em penicilina, gaze e procedimentos singulares.

A palavra jardim não dá flores, diz-me o passante
(ironizando uma minha possível inocência).
Ao que direi ver dela despencarem cheiros e lembranças,
rostos e possibilidades, flores que a imaginação fabrica.


│Poema da Série “Palavra” – Autor: Webston Moura│

PALAVRAS SECAS

Havia sonhado um poema.
Iria construí-lo água jorrando.
Perdeu-se debaixo de uma pá carregadeira,
entre as notícias nervosas do jornal primeiro
e o vozerio dos gentios ante o incerto.

Aqui, momento bem depois,
cá estou a deslizar o lápis no branco da angústia,
catando palavras que digam andiroba e catuaba,
palavras que possam domar touros e ventanias.

E tudo o que me toma é ausência e sono.
Como são fortes as palavras secas.


│Poema da Série “Palavra” – Autor: Webston Moura│

LI POESIA

Pão é uma palavra cheia.
Amor, idem, ainda que em falso.
Agora, pressa que acossa a ênfase imperativa.

Deseja-se paz, mas a lavoura é de cupins.
Aqui e acolá, tua boca pela minha, pronúncia grávida de desnexos.
Dai-me, Pollok, uma linha para ler tuas tintas!
Concede-me, Pessoa, a honra desta dança contra
                                                                         as coisas
                                                                           que nos
                                                                          caem do
                                                                          coração!

Abre-te, Sésamo, que acabo de cometer ócio explícito
na engenharia ardente das tarefas inoperantes do cotidiano:

li poesia & desejei ser.


│Poema da Série “Palavra” – Autor: Webston Moura│

domingo, 26 de março de 2017

Coisa Sussurrante







Morasse próximo ao mar,
perder-me-ia muitas vezes a olhá-lo.
Para mim, o mar é ócio, demora imensa junto ao vento.

Talvez, esta seja uma das senhas para o amor:
deixá-lo ser a coisa sussurrante que nos toma o corpo,
uma miríade de finas mãos costurando conchas.


│Poema da Série “Mar” – Autor: Webston Moura│


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ENQUANTO TE OUÇO NAS MARÉS

Teus olhos azuis, espelhos d’água sereníssimos.
Tua pele dourada, memórias de sal a sol.

És o sargaço furioso e eterno renascido sempre.
És a sombra de navios que não existem mais,
exceto suas carcaças, hoje moradas de líquens
e de senhorinhas que se afogaram em tardes esquecidas.

Por isso, estás aí nos meus sonhos
e cantas a monotonia agradável das marés
enquanto adormeço gaivotas em meu corpo.


│Poema da Série “Mar” – Autor: Webston Moura│

TUA PRESENÇA

Morasse próximo ao mar,
ver-te-ia, mesmo que não pudesse.

Não é desejo de alucinação;
apenas invenção do ócio em mim engastado,
prática de quem aprendeu o mar e nunca mais o deixou.

Carrego este búzio ao ouvido,
som primordial que engravida belezas.


│Poema da Série “Mar” – Autor: Webston Moura│

sábado, 25 de março de 2017

Um Cão Dentro de Um Quarto


Untitled (1960) - Eva Hesse




Este homem é um cão dentro de um quarto.
Só de solidão insuportável, grita e definha.
Não está só de outros, que há muitos em redor.
Está só de não encontrar mão e chão adiante.

Há um gesto de abandono nos corações.
Há um terror normalizado nas convivências.
Há uma falta, muitas faltas, todas as faltas.
Há uma vontade de fugir de todos os olhos.

Este cão, que é o homem, não mais sabe a flor,
a suavidade das auroras, a música do vento nas cortinas.
Sabe, a bem do mal que lhe corrói, receber notícias
e não faz ideia do destino a dar a tão más companhias.

Em círculos, sofre pensamentos,
reverbera-se doentiamente.



│Poema da Série "Em Torno de Um Cão" – Autor: Webston Moura│


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COM SEU INOFENSIVO OLHAR



Agora, se muito, olha esta janela, vê a paisagem,
mas não pode dar coisa alguma ao mundo.

Este cão, homem natural,
recebe a luz, sabe seu ouro, conhece a vida,
mas não pode reestruturar nenhum destino.
Está resumido a não ter força
e a olhar um jardim saturado de lágrimas.



│Poema da Série “Em Torno de Um Cão” – Autor: Webston Moura│

UM VULTO AO VENTO



Ninguém lhe sabe a moradia, sequer se há.
Sabem-lhe um apelido e o olhar silencioso.

Ele sempre atravessa a rua, talvez todas,
como se esse fosse o destino único, andejar.

É o cão sem dono, andrajo, sem eira nem beira.
E não é feliz, deduz-se da falta de vida que carrega.

Não penetra o coração de ninguém,
mas talvez não seja sua culpa.
É que foi feito para isso, dizem.

Há destes homens, lápis que não riscam;
homens sem assinatura de existência.

(Quem vem lá?
Um vulto ao vento.)


│Poema da Série “Em Torno de Um Cão” – Autor: Webston Moura│