quarta-feira, 26 de abril de 2017

AO SOM DE UMA SALSA



Quase não suporta a bolsa;
falta-lhe a respiração.
Pouco antes de virar a esquina,
o taxi some, surge um letreiro.
Que importa. Vamos a pé mesmo.
O filme é interrompido neste ponto.
Avisam, lá de fora, que a luz caiu na cidade inteira.
Você não gostaria de tomar uns drinques?
Amanhã tenho que ir à cidade vizinha.
Mas quem resiste a tão comovente convite.
A luz voltou. A loja de miudezas parece uma feira.

Pipocas, bolas, negros meninos sorridentes nas calçadas.
Um carro dos anos 50 ─ Estamos em Havana?
Recomeça a cantarolar a salsa, dança na calçada.
Um policial observa e sorri, distrai-se.

Sua pele parece algodão.
Já está quase na hora de ir para casa.
Me gusta mucho Mongo Santamaría.
No entendí.
Sorrimos.
Começa a neblinar, suavemente.


│Poema da Série “Incidentes” – Autor: Webston Moura│

O Cão



Dog - Agostino Carracci




Sempre, a partir das três, este cão me aparece.
Olha pela porta de vidro, faz sinal, ladra.
Dou-lhe alguma comida e água.
Ele come, bebe, demora-se um pouco e some.
Nunca soube para onde vai quando vira a esquina.
Do que me acontece, o fato sem rumo é apenas este,
o cão cujo nome ou origem não sei, nunca soube.

Dou de imaginar uma casa de onde ele foge
e vem desordenar, ao menos um pouco, minha rotina.
Este cão é a interrogação a que me obrigo pensar,
a pedra no sapato de meu pequeno reino de ordem e paz.
É o que me desestrutura e me põe no meio do inesperado,
como se uma pluma me tomasse as rédeas da razão e saísse ao vento.

Virá o dia em que ele desparecerá da minha vida.
Aí, que farei da hora vazia diante da porta?



│Poema da Série "Incidentes" – Autor: Webston Moura│

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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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O RELÓGIO



Guardo o relógio desde que aqui vim morar.
Curioso tê-lo encontrado dentro de uma das paredes.
A caixa de madeira, um entalhe com as iniciais ST na tampa.
Objeto antigo, mas nem tanto, ainda funciona.
Não quis tentar devolvê-lo, reconheço.
Talvez, acredito, para ter um mistério e não um roubo.
Depois de doze anos, continuo a perguntar sobre.
Inventei, para meu próprio gozo, possibilidades.
Mas nunca fui mais adiante em qualquer investigação.

Este relógio é o meu segredo obscuro,
aquela dose de fantasia a que imaginativas pessoas se dedicam.
Fora de toda previsibilidade, é a circunstância que não dirijo.
Caso casual, apesar dos doze anos, marca as horas em que aconteço fora do mundo.
E eu sempre hei de viajar.


│Poema da Série “Incidentes” – Autor: Webston Moura│

segunda-feira, 24 de abril de 2017

IMAGEM SOBRE O ESCURO

Este homem sorridente da foto está vivo,
mas apenas nisto, imagem e canção.
Por nossa lembrança, que o sol amarela,
sobrevive este homem, cantado em nossa voz
e conversado em nossas horas, história que se estende.

Parece ser que o maior das existências seja isto,
imaginar e sentir mais que tudo,
memória e força que o coração tange.

E assim diz-se passar a vida,
mais ainda, vive-la mesmo,
imagem sobre um escuro que desconhecemos.


│Poema da Série “Tempo e Vida” – Autor: Webston Moura│

UMA CONCHA NAS MÃOS

Vais à praia?
Encontrarás um objeto calcificado cheirando a ontem.
Toma-o, pois, à mão e compreende que estás nele e ele em ti,
emaranhados os dois de tempo na matéria que se transforma.

Não penses muito, rapaz, que não és velho.
Deixa que os anos além emprenhem a demora necessária.
Corre na areia, segue, busca o sol e olha a beleza.
Descansa tua cabeça de tanta história e lembra-te do momento.
Nunca mais verás o dia, este, tão erguido como agora.
E a isto, o dia real e único, é que deves chamar de milagre.


│Poema da Série “Tempo e Vida” – Autor: Webston Moura│

DE BRANCO E AZUL

Há um barco vazio na praia,
com um vestido branco e azul dentro.
Nenhum objeto mais ou indício de haver gente viva se acha.

Dão-se os homens em investigações,
suposições, palpites e até invenções.
Querem a verdade do que teria havido,
mas nada de oficial sobre sumiços e naufrágios se noticia.

Correrão dias e dias, lendas surgirão de cada canto.
Deseja-se dar sentido a um vestido branco e azul,
peça que algum dia, deduz-se, vestiu a moça sem nome.

Envelhecerão todos sempre a lembrar
de como incomoda este dia, este barco
e o vestido vazio, tempo descolado da linha.

Inquieta a vida correndo invisível e obscura no tempo,
o rosto e a história da moça sem nome vestida de branco e azul.


│Poema da Série “Tempo e Vida” – Autor: Webston Moura│