sábado, 1 de fevereiro de 2020

CENTENÁRIO DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO É MARCADO POR DESCOBERTA DE OBRAS INÉDITAS



Foto: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã


Do website Brasil de Fato
em 28 de janeiro de 2020


A própria ideia de homenagem ao centenário de João Cabral de Melo Neto pareceria estranha ao escritor ou, pelo menos, à imagem construída em torno da figura de um dos grandes ícones da cultura brasileira. Avesso à fama e ao culto à personalidade, João Cabral dizia que preferia não ser popular e que o fato de não precisar viver da escrita o permitia dar pouca atenção ao assunto.

Nascido no Recife, em 1920, ele publicou seu primeiro livro, Pedra do Sono em 1942. Se mudou para o Rio de Janeiro, aos 22 anos e aos 25 anos ingressou no serviço diplomático. Na época lançou a obra O engenheiro. Ao longo da carreira no Itamaraty, passou por países como Senegal, Portugal, Espanha, Inglaterra e Suíça, mas nunca deixou de escrever.

Em 1950, João Cabral publicou O Cão Sem Plumas, obra que viria a ser considerada a consolidação de um estilo criterioso, objetivo e rigoroso, completamente avesso a inspirações subjetivas, sentimentais e oníricas. Essas características o levaram ainda mais a um caminho de crítica ao culto à individualidade. Em entrevista ao jornalista e escritor Geneton Moraes Neto, o poeta é taxativo quanto a essa postura:

“Não gosto de carta. (…)  Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo.”

Não sem motivo, é de Cão sem Plumas que saem alguns dos poemas que hoje inspiram artistas muito conectados a uma linguagem extremamente atual das artes. Em 2017, a coreografa Deborah Colker criou um espetáculo que leva o mesmo nome do livro e de um dos poemas da obra. A banda Cordel do  Fogo Encantado incluiu no disco O Palhaço do Circo sem Futuro versos do poema Os Três Mal Amados, que também está no livro. A declamação visceral do vocalista Lirinha ficou famosa durante a turnê da banda e era gritada em coro pelo público sempre emocionado.

“O amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor comeu
meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos
os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços,
minhas camisas. O amor comeu metros e metros
de gravatas. O amor comeu a medida de meus
ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de
meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu
peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos

(…)

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia
e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu
meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da
morte.”

O Meu nome é Severino

Se Cão sem Plumas deu início à linguagem que marcou a identidade literária objetiva de João Cabral, foi anos depois, com Morte e Vida Severina (1955), que o autor experimentou sua maior popularidade. Com o subtítulo Auto de Natal Pernambucano, o texto conta a trajetória de um imigrante que foge da seca no sertão e busca a sobrevivência na capital Recife. 

“APRENDI NAS PEQUENAS GARES DE PROVÍNCIA”







aprendi nas pequenas gares de província
a esperar comboios que não chegavam nunca
(ou chegavam tão atrasados que
no momento em que se avistavam
já eu tinha desistido deles)
e sempre invejei o velho Tolstoi
fugido de casa aos oitenta anos
a deixar-se morrer numa delas
no meio de toda a brancura do mundo

um dia entre Belver e Gavião
(possivelmente nem sabes onde
isso fica)
uma velha pediu-me que lhe segurasse as mãos
porque de repente sentira muito medo de
morrer sozinha
(coisa que nunca deve ter passado pela
cabeça do velho russo
para quem a morte só podia ser um
brando ajuste de contas sem testemunhas)

então entre curvas e desvios contei-lhe
todas as curvas e desvios das minhas vidas
e ela sossegou um pouco e disse que
eu ia ser muito feliz porque sabia
distinguir entre todos o comboio certo

aquele explicou já na saída
que se afasta no exato momento em que
o sol desenha a nossa sombra no olhar de
quem nos deixou



│ALICE VIEIRA, in OS ARMÁRIOS DA NOITE, capa de Heduardo Kiesse/ ParadoXos (Caminho, 2014)

│Da página Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen:

│Arte - Dave Gilmoore

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

CAÇAR PASSARINHOS



Eu não caçava passarinhos.
Via os outros meninos caçarem,
exercendo seus domínios
sobre aquelas ariscas parcelas de vida.
Não o faziam por mal, mas a bem de comer,
fazendo-se homens ou a ilusão disso.
Havia uns de pontaria muito certeira,
pequenos guerreiros do ínfimo:
mata adentro, sabiam encontrar e surpreender,
logrando o êxito dos bornais cheios.
E o mais era para conversas de bravuras,
as quais se davam em um qualquer canto da cidade.


│Autor: Webston Moura│



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A PRACINHA



A pracinha da infância é quase a mesma,
mas crianças não há mais.
Há cães e gatos, abandono,
um cano furado, uma água fugindo,
um  vendedor de alguma coisa
e barulho, bastante barulho.

Em redor, o mundo cresceu
e apartou as pessoas.
Já não se vê o padre indo abrir a igreja,
nem os quase inocentes namorados
descobrindo o proibido.

Por um instante, fecho os olhos
e relembro o cheiro da pipoca,
as discussões em torno do jogo de bila,
as lorotas contadas sobre os filmes,
                                      enfim,
um universo desaparecido na passagem dos anos.


│Autor: Webston Moura│

UM MAR QUE AQUI HAVIA



Aqui havia mar
e tudo que o é:
do sal a gosto,
da água sem fim
aos multicores de vida.

Mas, queira ou não queira,
tudo se transforma.

Seguro em minha mão
esta pedra-peixe,
como quem abre um álbum
e chora sobre as fotos.


│Autor: Webston Moura│

O Mistério



Waving Leaves II (1981) - Nikos Hadjikyriakos-Ghinkas




Pássaros e formigas
sabem a chuva.
Antes mesmo,
ainda nos indícios,
eles a sabem.

Nós, não!
Nós nos perdemos d'O Mistério.



│Autor: Webston Moura

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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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ABISMOS



Para onde nos viramos,
são muitas palavras.
Como se fossem pedras,
como se fossem os pássaros do filme de Hitchcock,
como uma infinita nuvem de gafanhotos,
palavras.

Ainda que só insinuadas
ou escondidas noutros corpos,
palavras.

E nada sara nossos abismos.



│Autor: Webston Moura│