quinta-feira, 19 de maio de 2016

Deita-te comigo

Deita-te comigo.
É tão longa a noite.
Apagaram-se os brilhos
do tecto do dia claro,
ficou a iridescência nas
vidraças dos teus olhos
que bebo ou recuso.

A casa respira o sussurrar
das águas, se quiseres, ou
silencia e abafa todos os gritos
da solidão partilhada.

Ao alcance do teu gesto fico,
nascente, leito ou deserto.
Por ti me farei cascata ondulante
ou, como barro, me unirei
às reentrâncias absurdas das águas.



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# Poema constante de "Evocação das águas" (Seda Publicações, 2015), com desenhos de Carmo Pólvora.

Lília Tavares (1961)  é psicóloga clínica, há 24 anos a trabalhar na reabilitação de jovens e adultos. Casada e mãe de dois filhos, frestas de luz que a vida lhe deu. Unida à Poesia desde os treze anos, publicou em 1979 Fusão Crepuscular e outros Poemas em edição de autor. Participou, a convite, numa antologia de poetas do Baixo Alentejo, dois anos mais tarde. Natural de Sines, traz consigo o aroma das marés vivas de Setembro. De extremos, ama o aroma das terras, o sol, as alfazemas em Junho. Criadora e co-autora da Página "Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen", Lília é co-autora da Página "Poesia com Artes" e, neste âmbito, realiza  Encontros de Poesia e Artes em Oeiras. Tem criado eventos, prefaciado,  participado e/ou apresentado diversos livros de poesia de outros autores. Participou com outros onze autores em Rio de Doze Águas(Coisas de Ler, 2012), antologia prefaciada por Joaquim Pessoa. Publicou Parto com os Ventos (Kreamus, 2013), prefaciado por Carlos Eduardo Leal, RJ, e ilustrado com esculturas de arame de Simone Grecco, SP. Ama as pequenas coisas. Prende o olhar numa lágrima, num amigo, numa estrela.

PALAVRA ABERTA PARA A MANHÃ

Um café e o meu silêncio.




De saudades, entardeci.
Minha boca pronuncia terçã,
guarda-louça, mormaço e lisonja.
Apareço na generosidade
da palavra gentileza,
na sua cortês melodia
de moça e cozinha.

Assina-se brandura
às almas que ainda se põem,
entre um fagote e um oboé,
dissipadas de medos letais
no sempre que de comer bolachas,
devagar, como as crianças que se perdem de si
olhando a rua, a partir de batentes antigos
de casas que não existem mais senão em afrescos.

As pedras se limam, mutuamente.
Os afetos, igualmente, contra e com.
A vida, rio de tardanças, dá as cartilhas.

De Monet, Bain à la Grenouillère,
imersão a que me ponho.
Demoro-me no que seja alegria e paz.
E, da pintura, procuro um neologismo
para o que sinto ─ que seria?

De saudades, entardeci, já o disse.
E, agora, leve-leve, pronuncio janela,
palavra aberta para a manhã.


│Autor: Webston Moura
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quarta-feira, 18 de maio de 2016

ENTRE A HISTÓRIA E O RUMOR

Com seu olhar indestrutível.





Tudo será tarde:
agosto, derradeiro olhar.
Em desfecho, seguir.
Malas prontas,
silêncio,
vestes sóbrias,
um lenço ao bolso,
nenhuma palavra.

Pensando, diga ser feriado
ou um dia visitado, mas por fora.
E se vá, não se aperceba de uma qualquer novidade.
Não intente argumentar uma última música,
uma lágrima, de soslaio e cativante.

Não pense em mais nada.
Esqueça a salada tantas vezes errada,
o molho em desalinho, o ponto derrapante,
algum abril, uma culpa partilhada, móveis em comum.

Rasgue as cartas,
queime-as
e deixe o vento saber.

Caso possa,
caso queira,
encontre um cais
e apenas olhe.


│Autor: Webston Moura
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sábado, 14 de maio de 2016

Rosário



Premonición (1970) - Lilia Carrillo




Uma pessoa, seu trânsito:
conter o infinito no finito.




Sou uma pessoa de carne e osso,
e o tempo me atravessa.
Eu, ínfimo-um, percorro
a história que me faço,
aparentemente só.

Moro na presença que
me desfruta a fala, o olhar,
as manhãs que, por lembrança,
ainda são, mas que já se foram.

Sofro impasses e risos.
É de lei que assim o seja:
oscilar entre oblíquos
e saúdes; suportar
a asa que sustém
o peso de toda a alma
que carrego.

Sou de um tempo deteriorado,
tempo em que os homens já não andam
desarmados de argumentos e cobranças.

Quando meigo e reclinado no leito de um céu,
desejo o sweet-kitsch da canção que,
entre rosas vermelhas e domadas,
derrama coelhos num dia de abril.

Quando crasso, mergulho cavalos
em ruivos prados; vou-me
para o lado de dentro do véu,
onde a palavra ainda é virgem.

E desconfio de que o amanhã
revelará apenas a novidade já sabida,
a de que o mundo não mudou
e isso aconteceu enquanto eu partia
de um dia para o outro,
como num rosário.



|Autor: Webston Moura|

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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Araibu e Só Um Transeunte.
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sexta-feira, 13 de maio de 2016

O Abandono



Abstract Composition (1915) - Jean Arp




(Onde o incerto, também a vida)

A calidez com que o dia se ergue
e afia o seu humor por sobre as casas.
A nossa forma mesma de recebê-lo,
impossibilitados de sermos mais.
A vaga lembrança, no meio da tarde,
de um momento de devaneio.
A consciência e os hiatos
que preencherão o corpo.
O inventário de infrações e desejos,
caderno posto a funcionar sem fim.
A pele que se enruga, ao espelho:
luz devolvida em desagrado.

Abrir a porta,
como quem já sabe,
e, a seu pé,
um perene tigre reencontrado.
Erguer os braços e despejar
os restos de um sono conhecido.

Bocejar
(um por um triz):
e ar não faz música.

Tomar banho,
comer o rápido
e sair em áspero.

O abandono.


|Autor: Webston Moura|

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, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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segunda-feira, 9 de maio de 2016

NAS NUVENS DO PEITO

No fim da tarde, o vento e a amizade.




O homem de pouca conversa,
com uma gaiola sem canário
e uma coleção de gravatas borboleta.

Comprava o jornal, tomava o café,
fumava, punha-se a olhar a cidade,
passeava praças e ruas.

Sabia dos terminais de ônibus
e do preço dos legumes.

Era de pouca conversa
e, assim, não lhe apetecia
dar-se ao saber alheio mais que
o exposto em sua figura.
O mais era a imaginação dos outros.

Comer, dormir,
banhar-se, vestir-se,
tomar sabência
da pressão arterial
e do fígado,
ver subir e descer
governos,
pagar impostos
e taxas.

Abria,
entrava
e fechava
aquela porta.
Sua casa,
aquela das janelas que só
às vezes eram abertas:
nada se via de mais.

(Nas nuvens do peito,
ao som do Hyperborea,
Teresa dançava enamorada
de Vinícius de Moraes
─ e ninguém sabia).


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NOTA:
1. Hyperborea refere-se a um dos álbuns da banda alemã Tangerine Dream.

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│Autor: Webston Moura
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quinta-feira, 5 de maio de 2016

A MOEDA SEM FACES

Pagarei na mesma moeda!
Anos depois, ainda estava lá.

Numa velha caixa de sapatos,
a servir de pequeno arquivo,
o envelope delicadamente cuidado
(é meu costume),
sem dobras,
delgado e já não tão branco,
o selo datado
de alguma íntima paragem
a que me reservo não dizer.

Dentro,
de entre três tipos de papeis,
cores distintas, tessituras não menos,
o cheiro, embora velho, ainda.
E, também, todas a palavras,
frases ditas em en-ca-de-a-men-to
perfeito ─ poder-se-ia dizer uma música
ou a forma com que as geometrias do regular
se expõem ao sol dos nossos olhos ─,
tudo que num setembro ido
havido me foi
quando li:
pagarei na mesma moeda!

Distinguiria, se soubesse
a peleja, se assim o fosse
(que teria sido?),
mas não sei até hoje
mais que o depois,
o que me ficou:
o nunca mais.

Agora, que faço eu da vida sem você?[1]



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NOTA:
1. Primeiro verso do refrão da canção popular "Você não me ensinou a te esquecer" de Fernando Mendes (seu intérprete primeiro), a qual Caetano Veloso depois "refez" à sua maneira.

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│Autor: Webston Moura
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sexta-feira, 29 de abril de 2016

O ELO-ENCONTRADO

Não fará com que te solte
Nada no mundo: me prende
Que assim vence não se rende
Nosso amor. Nós: és-me. Sou-te




Procuras-me? À procura estou dAquela
Mulher-Síntese, a Múltipla (Cavala
Lâmia Circe Vampira Generala
Mãe Amiga Irmã Noiva Cinderela

Fêmea Amada) e Si-Mesma: desabala
Meu ser e desintegra-se, esfacela-
Se, entrega-se à Visão de Ti, a Bela
Ante a qual já não sou: sou-Te; és-me; estala

O novo sermos em fusão; anulo
O outro que fui, refaço-me Teu; Ela,
A que foste, em mim transmudas; engulo-

Te, entranhas-me e anelados, em casulo,
Elo, circumprojeto-Te; enovelas-
Me, engravidas-me, ao passo que Te ovulo



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# Poema constante de "Miravilha: Liriai o campo dos olhos" (Confraria do Vento, 2015)

│Autor: Alves de Aquino, O Poeta de Meia-Tigela


# LEIA TAMBÉM:



O Poeta de Meia-Tigela (Alves de Aquino), natural de Fortaleza-CE, 1974, participou em 2007, da Antologia Massanova – Poesia Contemporânea Brasileira. É autor de: Memorial Bárbara de Alencar & Outros Poemas (2008); Concerto Nº 1nico em Mim Maior Para Palavra e Orquestra. Poema: Combinação de Realidades Puramente Imaginárias [Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2010]; Miravilha – Liriai O Campo dos Olhos [Confraria do Vento, 2015]. Seu blog: http://opoetademeiatigela.blogspot.com.br/.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Hálito de terra



Com as mãos infantis,
desequilibrou minhas
águas primitivas:

meu peixe de infinita candura.

Em seu lago
de salgado gosto,
renova oceanos quando chora
e planta benquerenças nas bordas
de meu rio.

Porque livre está de minhas areias,
embora semente,
               fruto
               e raiz.


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# Poema constante de "Milagreira" (Casarão de Poesia, 2011)

│Autora: Iara Maria Carvalho



Iara Maria Carvalho nasceu em 1980, em Currais Novos, Seridó norte-rio-grandense. É graduada em Letras e mestra em Estudos da Linguagem, pela UFRN. Atua como agente cultural em sua cidade, através do Grupo Casarão de Poesia. Como poeta, venceu o 3º Concurso de Poesia Zila Mamede (Parnamirim/RN, 2006) e obteve a 3ª colocação no Concurso Nacional de Poesia Helena Kolody (Curitiba/PR, 2010), dentre outros concursos.