terça-feira, 27 de outubro de 2020

Poesia



Muitos homens

nunca lerão um poema.

São homens
que bebem café,
tomam banho de rio,
têm filhos e um cachorro.

Poucos homens
conhecerão meus versos.

E o que direi a esses homens
nos meus versos?

Que também bebo café?
Que tenho saudade de casa?
Que há noites em que fico sem dormir?

Quem sabe, em vez de poemas,
talvez melhor seja
telefonar a cada um desses homens.

Há algo na poesia
que não se pode contar?

Aguardo respostas
para ajudar a rimar.

 

_____________________


Sérgio Queiroz de Medeiros – Mossoroense-RN, 1981. Autor de “Um lugar azul” (2009), “Para ler na chuva” (2012). O poema acima faz parte do livro “Guardados”, publicado pela Sarau das Letras, em 2019. Um blog: umlugarazul.

ESPAÇOS EM BRANCO, de Tânia Du Bois


http://projetopassofundo.com.br/



Espaços em branco, de Tânia Du Bois, 2019. Livro ousado e bem cuidado, elegante, como os outros tantos trabalhos da autora. Belamente ilustrado pelo poeta e contista Pedro Du Bois.

Por ler a palavra “microcontos” na abertura, imaginei o já visto noutros autores, uma história de umas cinco, seis linhas, breve, condensada, como o “micro” sugere. Porém, Tânia radicalizou ainda mais a ideia, o que me surpreendeu. Cada conto, ainda mais micro, dá-se com um título e uma frase, cabendo ao leitor/leitora permitir-se seguir o dito, imaginar e, até se quiser, reunir tudo na cabeça, como se as sentenças fossem pássaros voejando, lá e cá, mostrando, em cada ida ou vinda, a paisagem que se abre quando olhamos e mudamos a direção, o foco, o interesse. Lembrou-me, pois, os pedaços de prosa e versos agudos que selecionamos de contos, romances e poemas, além, obviamente, de letras de música, sugestões da internet, quotes, ditados fixados em muros e outros espaços. As ilustração do Pedro Du Bois completam o trabalho.

Para um observador menos atento, o projeto, a talvez insinuar pressa, dada a brevidade de um micro tão micro (uma frase por vez), talvez soe a alguns como sendo isso mesmo, o que não condiz com a verdade, ao menos a verdade que enxergo. A frase, cada uma, nos intervala, causa-nos ainda mais silêncio (reflexão), pausa. E nós, ali, olhando aquelas paisagens, aquelas sentenças, o que pensamos? Em como nos toca, como se nos puséssemos num exercício de observar em redor do dito, além, obviamente da entranha escondida, um segredo, uma sutileza.

Três exemplos:

AMAR
De tanto amar se deixou abismar.
SORTE
Vestiu saia branca e curta; a música dizia "vesti azul".
Sua sorte não mudou.
LIVRO
 Leu os versos em dez prestações.

...........................................
SERVIÇO:
Espaços em branco: microncontos
Tânia Du Bois
Projeto Passo Fundo (2019)

Tania Du Bois – Residente em Balneário Camboriu, SC. Pedagoga, articulista e cronista. Autora de: O Exercício das Vozes"; Amantes nas entrelinhas; O eco dos objetos; Comércio de ilusões; Autópsia do invisível; Vidas desamarradas; Arte em movimento; Entrelaços; A linguagem da diferença, etc. Onde encontra-la: Recanto das Letras [tâniadubois], Letras et cetera [nanquin]; Projeto Passo Fundo [projetopassofundo]

terça-feira, 29 de setembro de 2020

BASTANTE






Basta
- no arremedo improcedente
  das ausências me apresento
  à luta: ponto

sou o novo soldado
engajado em guerras
vespertinas: compro

repentinamente a hora cheia
avisa sobre o corpo: velho

a mecânica do mundo estraçalha o sono
o aviso na porta indica a saída

basto em mim mesmo
que essa luta não é minha.

 (Pedro Du Bois, inédito) 


│Autor: Pedro Du Bois

│Do blog do autor: http://pedrodubois.blogspot.com

OUTONO





Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor...
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

(16 setembro 1966)



│ MIGUEL TORGA, in DIÁRIO X (Coimbra, 1968), in DIÁRIO IX-XI (Dom Quixote, 2011)
│Fotografia ©JNS_Vinha_Douro_Vinhateiro

O LUGAR DA CASA






Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.


│EUGÉNIO DE ANDRADE, in O SAL DA LÍNGUA, PRECEDIDO DE TRINTA POEMAS (APE, 2001), in POESIA (Modo de Ler, 2011)
│Óleo s/ tela: About time, ©Eva Ryn Johannissen (Suécia) 

SEM OUTRO INTUÍTO





Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
 
│ LUÍS MIGUEL NAVA, in VULCÃO (Quetzal Editores, 1996); in POESIA (Assírio & Alvim, 2020)
│Fonte: Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen 
 Fotografia ©Adriano Basto

sábado, 22 de agosto de 2020

MEDO





Aquela estranha sensação,
às cinco da tarde,
a casa quase vazia,
você só,
um café na cozinha,
todos os sons brotando singularmente,
o vento nas cortinas,
um pássaro que,
de repente,
para de cantar,
a campainha muda,
também mudas as casas da vizinhança,
nem cachorro,
nem carteiro,
muito menos o caminhão de gás
ou o entregador de água mineral,
menos ainda polícia e sirene
ou o que o valha,
nada de nada,
só você e um sisudo relógio de parede.

Sem mais,
sem que ninguém ligue,
a TV ressoa, lá de cima,
do quarto último,
algum jingle com voz de criança.


│Autor: Webston Moura│


│Imagem: Sem Título, de Lee Bontecou