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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Estamos Sós







Estamos sós, mas já não choramos
o orvalho da solidão
estamos sós
mas ninguém pode roubar-nos o poema
quando fechamos os olhos
e se reflete toda a luz do mundo.

O silêncio que nos costura o corpo
ressoa como uma haste de fogo
acendida pela memória
uma agulha de sangue
um pássaro ferido no restolho
no silêncio da terra a fria colheita
e a serenidade.

Estamos sós
e ninguém se apercebe do perigo
da brancura nas sombras
onde se abrem os nossos braços
ao vazio da espera
os olhares vagos quotidianos
a apodrecida indiferença dos dias sem paixão.

Estamos sós na indigna noite
com o passaporte desgastado
pelo ácido do tempo.
O dia tristemente azul acende-se na melancólica madrugada
a quem oferecemos a tranquila revolta
tanta gente, tanto nada.

Todos os nomes
são água
todas as palavras
falam mar.

*

Fotografia: Cage, de Bita Mohabbati

|CARLOS RAMOS, in ÁGUA SILÊNCIO SEDE (Antologia; Poética Ed., 2021)


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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Araibu e Só Um Transeunte.
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Poema Sexto






Doce é o sacrifício dos frutos, fraterna
a luz dos pássaros. A terra canta, exibe agora
o esplendor dos vulcões, para acender na noite
o imenso candelabro do universo.

Ofereço a mim todas as vidas, todos os segredos
por detrás da aurora. Amo todo o silêncio,
toda a dor redonda de cada um dos dias.

O que vejo, o que sinto, é a respiração
das palavras, hálito doloroso das colinas da tarde,
a curva da fala que se demora na ternura das mãos
e de onde tomba o oiro dos relâmpagos ou
se debruça a luz fria das primeiras horas.

Escreve-me como se ainda me amasses.
E eu guardarei o fogo. Dar-te-ei o sol. Talharei o sílex
para o coração azul do pássaro. E o tecido dos beijos
para vestir a pele das coisas mais agrestes.

Dividirei com a tua boca o feroz vinho da juventude
e cantarei contigo todos os salmos da paixão.
Por fim, esperar-te-ei no rio, junto à margem. Onde
as romanzeiras se despedem do verão.

E onde, agonizante, caminha para o sol
o animal que aos poucos morre de tristeza.

*

Óleo s/ tela ©Alberto Pancorbo

|JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Edições Esgotadas, 2013)


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["Algures na epiderme moram pequeníssimos grãos"], de Lília Tavares







Algures na epiderme moram
pequeníssimos grãos
que guardam instantes.
São poros onde ficaram
ocultos os dias em que deslumbrados
tropeçámos na ternura
e fomos jangada, marés e areias.
Num anoitecer inesperado,
a pele salgada de uma concha
pode vir despertar a limpidez velada
desses momentos redondos, brancos
e lunares. Gratos aos búzios,
às grutas percorridas, o cansaço
há-de conduzir-nos a um mar de mel.
*
Fotografia: Only Two, de Dmitry Laudin

|LÍLIA TAVARES, in NOMES DA NOITE (Modocromia, 2019)


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Os Teus Pés








Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram vôo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

*
Fotografia © Andrea Tomas Prato
*

|PABLO NERUDA, in POEMAS DE AMOR, Ed. Bilingue c/ tradução de Nuno Júdice (D. Quixote, 2010)


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sábado, 27 de abril de 2024

Noite de Abril






Hoje, noite de Abril, sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.

E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.


|SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in POESIA (Ed. Autora, Coimbra, 1944; Assírio & Alvim, 2014)
|Imagem: Colagem © Donna Watson

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terça-feira, 23 de abril de 2024

Dualismo







Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Corno se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.
Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.
Capaz de horrores e de acções sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:
E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demónio que ruge e um deus que chora.


|De Olavo Bilac
|Aquarela: "Faces", de Arline Wagner


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quarta-feira, 6 de março de 2024

A Palavra Mágica







Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

*

Autoria: Carlos Drummond de Andrade, em Discurso da Primavera e Algumas Sombras (1977)

Ilustração: Um pote cheio de palavras, ©Sonja Wimmer



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SINTO SINTO







Falar, non falo galego
pero sinto.
As cousas da miña vida
son agarimosas,
As amo con todo ardor;
Son elas mesmasáquí, abaixo, alá,
tódalas mesmas, sinto
como almas.

Sinto o paxaro que vai voar
polo sendeiro, sinto as borboretas
cantando neses ramalletes,
sinto as margaridas que se pousan
neses prados, como se foran meus
Sinto, sinto....

*

Autoria: LUISA PAZ MONTENEGRO, in POETAS DO REENCONTRO II (2021)

Óleo sobre tela: Calypso, de George Hitchecock

*



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