Mostrando postagens com marcador Quem Lê Sophia de Mello Breyner Andresen. Mostrar todas as postagens
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quarta-feira, 22 de outubro de 2025

MAS QUE IMPORTA







Outono. A luz doirada enobrecendo
a terra. O grito da última ave na meiga
quietude do ocaso. As amarelecidas
folhas em permanente aceno. O adeus.
O gesto passageiro do vento em nossas
frontes. Breve carícia. Breve afago.
Breve embalo. O arrepio. A primeira
árvore calcinada. A anunciação da neve.
O crepúsculo espraiando sombras e reflexos.
Cintilações. Melancolias. O ar povoado
de presságios. Um halo de mistério a
envolver as coisas. A chuva a ressoar
entre os canaviais. Vagas de serenidade.
Suave cadência em nossas almas.
Suave melodia. Diáfana. Perene.
O moinho abandonado coberto de heras.
E de musgo. Verde. Verde. Além uma
fogueira a crepitar sozinha na paisagem
desolada. As cinzas pelo chão dispersas.
Derramadas. O rio entardecendo.
O sopro da brisa aveludando as águas.
As águas fluindo num doce tumulto de
folhagem murmurada. O balancear incerto
das agulhas dos pinheiros. A respiração
inquieta dos juncos. A frescura sonora
dos álamos. Altos. Altos. O vale de
choupos olmos amieiros e eucaliptos.
Os penedos enegrecidos. As giestas.
As estevas. Os líquenes. O húmus.
Os soutos de castanheiros meio despidos.
Os regatos. Os caminhos sinuosos
dos montes. O tilintar dolente dos chocalhos
do rebanho. O chamamento cansado do pastor.
O latido dos cães ao fundo da estrada
poeirenta. A poeira levantada pela ventania.
O sino a repicar ao longe como um vasto
lamento. A aldeia. As casas de xisto. As ruas
ermas. O húmido sussurrar da velha fonte.
A igreja imersa em preces e orações.
O adro deserto. O coreto derruído. A praça
sossegada. O eco dos passos de um par
de namorados a perderem-se na distância.
Um vago rumor de vozes vindo do interior
de umas águas furtadas. Os acordes de um piano
agonizando na lonjura. O velho solar
oculto pelo arvoredo. O pátio empedrado.
O brilho dos azulejos. O relógio da sala
a bater as longas horas de antigamente.
O romance de Camilo aberto sobre a cadeira
de veludo. O odor do café acabado de moer.
A brancura da toalha de linho sobre a mesa.
A cor rubra das romãs sobre a salva de prata.
O odor limpo do pão recém-saído do forno.
A lareira. A lenha ainda humedecida. O gato
friorento aninhado na alfombra. O lume.
O estalar das pinhas. A labareda. O odor de
brasas a encher a casa. O fumo das castanhas
assadas. As histórias de família contadas
junto ao fogo. A paz dessa criança dormindo.
A comoção. O encantamento.
O frescor da cama acabada de ser feita.
O luzir vagaroso do candeeiro de petróleo.
O jardim silencioso. O lago quedo.
Os buxos. Os ciprestes ancestrais. A voz
monótona da água a jorrar no tanque.
O cheiro a terra molhada. O anjo de pedra.
O livro de salmos esquecido no banco de
madeira. O chiar do baloiço vazio. O repuxo
parado. Pelos canteiros, asas de borboletas mortas,
as pétalas desfeitas das rosas que ficaram.
As derradeiras. O plátano entristecido.
O estremecer repentino das ramagens.
O ninho vazio tombado sobre a lágea.
O poço a verdejar de lodo. Fundo. Fundo.
Os ladrilhos limosos. As trepadeiras
dos muros em degredo. O campo à volta aos
socalcos de erva atapetado. O assobio
do comboio trazido pelo vento. E lá longe
o areal. A lisura do areal longamente exausta a
invocar todos os infinitos que sonhamos.
A névoa a invadir a praia. A torre do farol
desmoronada. O mar matizado de raros tons.
Os rochedos. O alvoroço das gaivotas
por entre as nuvens fugazes. O som rouco da
rebentação. O perfil magoado das falésias.
As ondas fugidias. O horizonte sem termo. A imensidade.
Mas que importa, meu amor, que digam haver
nisto beleza se não a vejo com os teus olhos?

*
Música de Maurice Ravel (sugerida)
https://www.youtube.com/watch?v=sYNlYMvFA5U
*

Óleo s/ tela, de Marc Chagall

|Autoria: GONÇALO SALVADO, in EMBRIAGUEZ (Sirgo, 2001)




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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Bucólica






A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.
.
S. Martinho da Anta, 30 de Abril de 1937

*
Arte © Francisco Fonseca, Porto

|Autor: MIGUEL TORGA, in DIÁRIO I (1941, Coimbra, 7ª ed., 1989) in DIÁRIO Vols. I a IV (Dom Quixote, 2010)




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domingo, 22 de junho de 2025

Laranja



Oranges - Tin Johnson



Por vezes, basta pegar
numa palavra - laranja - por exemplo.
Deixar que role,
que empreste à mão
a redondez e a cor do desejo.

Se lhe ferimos a casca
responde-nos
com um aroma cítrico
que entontece.

Quando levada à boca, gomos de ouro,
toma-se logo mais brando o olhar
sobre a névoa do quintal.

Lá fora, as laranjas, lanternas
dos jardins das Hespérides
Cá dentro, suco e sabor a saber
em redor da palavra-tema.
Por vezes, laranja
Por vezes, poema.

*

Óleo sobre tela: Oranges, de Tim Johnson

*

|Autoria: LÍDIA BORGES, in DESARRUMOS (Ed. de Autor, 2025)



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sexta-feira, 19 de julho de 2024

Estamos Sós







Estamos sós, mas já não choramos
o orvalho da solidão
estamos sós
mas ninguém pode roubar-nos o poema
quando fechamos os olhos
e se reflete toda a luz do mundo.

O silêncio que nos costura o corpo
ressoa como uma haste de fogo
acendida pela memória
uma agulha de sangue
um pássaro ferido no restolho
no silêncio da terra a fria colheita
e a serenidade.

Estamos sós
e ninguém se apercebe do perigo
da brancura nas sombras
onde se abrem os nossos braços
ao vazio da espera
os olhares vagos quotidianos
a apodrecida indiferença dos dias sem paixão.

Estamos sós na indigna noite
com o passaporte desgastado
pelo ácido do tempo.
O dia tristemente azul acende-se na melancólica madrugada
a quem oferecemos a tranquila revolta
tanta gente, tanto nada.

Todos os nomes
são água
todas as palavras
falam mar.

*

Fotografia: Cage, de Bita Mohabbati

|CARLOS RAMOS, in ÁGUA SILÊNCIO SEDE (Antologia; Poética Ed., 2021)


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Poema Sexto






Doce é o sacrifício dos frutos, fraterna
a luz dos pássaros. A terra canta, exibe agora
o esplendor dos vulcões, para acender na noite
o imenso candelabro do universo.

Ofereço a mim todas as vidas, todos os segredos
por detrás da aurora. Amo todo o silêncio,
toda a dor redonda de cada um dos dias.

O que vejo, o que sinto, é a respiração
das palavras, hálito doloroso das colinas da tarde,
a curva da fala que se demora na ternura das mãos
e de onde tomba o oiro dos relâmpagos ou
se debruça a luz fria das primeiras horas.

Escreve-me como se ainda me amasses.
E eu guardarei o fogo. Dar-te-ei o sol. Talharei o sílex
para o coração azul do pássaro. E o tecido dos beijos
para vestir a pele das coisas mais agrestes.

Dividirei com a tua boca o feroz vinho da juventude
e cantarei contigo todos os salmos da paixão.
Por fim, esperar-te-ei no rio, junto à margem. Onde
as romanzeiras se despedem do verão.

E onde, agonizante, caminha para o sol
o animal que aos poucos morre de tristeza.

*

Óleo s/ tela ©Alberto Pancorbo

|JOAQUIM PESSOA, in GUARDAR O FOGO (Edições Esgotadas, 2013)


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