terça-feira, 20 de setembro de 2016

O SILÊNCIO



Vozes do mar, de ribeirinhos claros,
de árvores ameigadas pela aragem,
de montes e de vales e de ninhos,
de penedos e de ervas e bichinhos,
respirações suaves da Paisagem…;

(uma formiga arrasta um grão: entanto,
há de o seu peso ir a arrastar no chão,
e esse peso, a arrastar, será um canto…;

vai à roseira a borboleta ansiosa:
e ao sugá-la, nos rápidos instantes,
há um barulho musical na rosa
e outro naquelas asas palpitantes…);

cantos do Sol amanhecendo a aurora;
vozes do Sol enchendo o meio-dia,
ais do Sol pela tarde gemedora…;

vozes-sopros e sons crepusculares
que evaporais e adormeceis nos ares,
onde tudo dorme e tudo erra:
as dos frutos crescendo nos pomares,
a das raízes a furar a terra;
as dos astros que vão, longinquamente,
rompendo o ar, nas órbitas traçadas,
e donde nos virão (a alma as pressente)
outras vozes, também, adelgaçadas…;

fala do Todo, línguas do universo,
cujos diversos timbres são iguais:

- sois vós, no vosso murmurar disperso,
que este Silêncio universal criais.

Apenas no Silêncio, na beleza
do seu falar, a alma se extasia:

harmonioso como a luz do dia,
o Silêncio é a voz da natureza.

000

│Autor: Afonso Lopes Vieira

Da obra “Ar Livre”, de Afonso Lopes Vieira, Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso, Lisboa, Portugal, 1906, 211 pp., pp. 155-157.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

UMA PEQUENA ROSA DE QUELUZ

Amor,
este cais de setembro a sol
onde a tarde me põe aos ventos.

Olho os teus olhos
(yeux papillon),
luz negra no horizonte
de continentes tranquilos.

Quero a liberdade dos bichos,

acordar orvalho, cavalgar raios,
dispor de espaços

                         vazios.


Ao canto da página, tua escrita:

as fadas existem; estrelas, eu as leio.
Depois, fecha os olhos e respira.
Da rua, pão e outros cheiros.
Uma sereia sobre uma rocha.
As ondas arremetem. Espuma.
Vinho, corpo, ira.
Que os Visigodos não nos encontrem!



│Autor: Webston Moura
_______________________

Clique "aqui" para ver outros poemas

ESTA INCONVENIÊNCIA CONTRA A ROTINA



Tudo é interino, inclusive nós.
Esta noite passa; a lembrança, talvez.
O perfume no lenço; o vento, perfeito.
João Bosco canta Desenho de Giz.
As luzes, laranjas mornas no topo dos postes,
exibem o véu úmido de uma quase-neblina.

Dizem que, lá fora, um povo se debate, e é verdade.
Mas, pausa que o sonho requer,
o amor é esta inconveniência contra a rotina.

O homem é pouco; o tempo, idem.
Olha o rouxinol desenhando lilases na lua!


│Autor: Webston Moura
_______________________

domingo, 21 de agosto de 2016

UMA GRINALDA NO AR

O dia exibe um deserto:
areia e pedra, infinitamente.
O céu, nudez azul.
Olhos nos faltam à sua magnitude.
Solitário é o peregrino.

Longe, cidade vazia,
rastro de parda criatura,
uma ilha depois de todos os fins.

A palavra que a isto descreve,
um arame estendido num zênite.

Dois antônimos pássaros
e toda a luz demasiada.

Uma grinalda no ar,
bailarina e veleiro.



│Autor: Webston Moura
_______________________

sábado, 20 de agosto de 2016

LICOR E PENÍNSULA

Vazia a praça,
as águas falavam.
Uma praça azul:
líquida e fêmea.

Como quem,
depois de dez anos,
retorna de alguma península esquecida,
perdia-me no ir e vir, volteando 
            ladrilho, ladrilho, chiclete, ladrilho,
            ladrilho, moeda, ladrilho... A torre!

A igreja, a mesma;
sua pintura, não.
Do outro lado da rua,
um bebê e uma mãe,
os dois em remanso.

Ladrilho, água, ladrilho, água.
Gosto de estar, depois de dez anos,
volteando a música licorosa na carne,
passado e presente, domingo e vazio.

Vazia a praça, porque para mim:
marujo e azul, domingo e vazio.

Vazia a praça
depois de dez anos,
ladrilho e chiclete,
licor e península.


│Autor: Webston Moura
______________________

domingo, 14 de agosto de 2016

ESMERALDAS FLUÍDAS

Eu nada tenho a ver com os homens
que versam solilóquios de fins-de-mundo.




Correm as águas mansas, é madrugada.
O riacho é a maturação de uma calma adquirida.
Em seu cerne, as vidas de seres
que falam as suas próprias línguas
e exibem noites em seus corpos.
Seus olhos são líquidos
e suas escamas cintilam.

Correm as águas numa imaginada
tela de Marc Chagall.
Nela, sonha-se um andarilho que diz
ter sido navegante de viagens agradáveis.
Resta o carcomido casco de um barco,
agora moradia de esmeraldas fluídas.

Em redor... árvores.


│Autor: Webston Moura
_______________________

quinta-feira, 30 de junho de 2016

COM UM EQUINÓCIO NA BOCA

Tudo que se passa aqui
Não passa de um naufrágio



Frágil, a transparência do vidro.
Meu olhar se repleta de sua queda,
uma jarra posta sobre uma toalha branca
numa mesa escura de madeira antiga.
Ao fundo, uma janela também de vidro
que permite imaginadas e frágeis garças.
A jarra cai e se despedaça no chão.
Depois, o silêncio perpassado de luz,
os cacos aquietados e disformes,
a lembrança da harmonia anterior.

A vida, que assim se parece
(a vertigem antes das quedas),
amo-a como às flores fortes e rúpteis.
Dou-me a estes entalhes de palavras discretas,
as quais se possibilitam no mundo onde vivo,
para que não me possa desaparecer o gosto
de saber-me aqui, este aqui passageiro,
única terra onde vim ser bárbaro
e, simultaneamente, terno.

Escuto, em anil, uma voz de mulher:
       “Gosto muito da palavra equinócio,
         pois me lembra de coisas que não diviso
         senão com os olhos fechados.”



___________
NOTA:
1. A epígrafe são versos da música "Água" de Djavan, que se encontra neste disco: [link: https://youtu.be/]

.....................................................

│Autor: Webston Moura
_______________________