terça-feira, 3 de novembro de 2020

O FANTASMA DE LICÂNIA (PARTE XXV)



 Clauder Arcanjo


             
            — Você não devia ter largado tudo. Tal busca, como qualquer busca humana, era aquilo que o mantinha vivo, útil. Sem ela, você ficará no vazio, ou, no máximo, no húmus do nada. Nada este, acredite, colhido na cova da terra dura, numa noite fria e longa. Onde o medo e a dor serão eles os únicos, e desleais, companheiros. Repare agora na sofreguidão dos seus passos, na tibieza de sua voz, nessa face lívida e carregada de dobras de receios. Não, não conseguirá subir ao cume de...
            — Eu nunca quis, nem quero, chegar ao topo! A planície sempre me bastou. Nela, o que há de concreto e permanente me basta; bem como o seu cabedal de dúvidas é o bastante para pesar-me nas costas. Somos humanos, e a junção desses dois bocados não pode transbordar do pote da nossa carne, há um limite no volume do espírito que os contém e retém...
            — Você, Acácio, vai acabar afundado no pântano das filosofices que você mesmo fustiga! Há fantasmas demais no real, para ainda espicaçarmos o desconhecido, o ininteligível. Munido com suas teorias racionais, como se essas bastassem para abrir e entender o que jaz em esfera outra; você, feito um louco, claudica e se espanta, sem compreender, sem decifrar. E, desta forma, o horror ainda mais o entontece e, vira e volta, o faz cair, sedento e faminto, na terra oca das ilações, das suposições. Suposições que, ao tentar parti-las em pedaços menores, a fim de estudá-las, elas se reproduzem infindamente, sem mencionar que se travestem de outras formas, como se paridas por outros tipos.
          — E o que nós somos, se não um investigador do indecifrável, do inenarrável?... As palavras são a semente do inaudito, e o inaudito provoca o verbo jamais dito. Como se decifrar e traduzir fossem o moto contínuo de viver.
          — Pare e se volte para o sol. O dia nasce, apesar de seu desespero, Acácio. Os pássaros louvam o dia, enquanto você o recebe no altar das suas aflições...


***

         — Com quem você estava a conversar, Companheiro Acácio?
         — Com ninguém, mestre Dandora.
         — Mas...
         — Tudo bem, estava a conversar comigo. O meu juízo me cobra, e não há juiz mais rigoroso e severo.
         Lá fora, um trinado baixo, quase em solfejo, como se a caverna onde se encontravam coasse o som do que vinha de fora.
         — A cidade toda a perguntar por você. Os meninos da Scotland Yard de Licânia perdidos, como se lhes faltasse rumo. Você, Acácio, conseguiu levar para Licânia, não sei explicar como, algo novo. Algo que levou a cidade toda, isto com seu jeito ingênuo e manso, a respirar uma graça e uma energia mágica que não havia antes por aqui.
         — Mas...
         Nisto, ouvem-se passos no lado de fora da pequena caverna no alto do Serrote da Rola, local que fora escolhido como abrigo temporário por nosso Holmes de Licânia.
         — Quem está aí?
         — Sou eu, senhor Acácio.
         — Eu quem?
         — Um cidadão de Licânia, de nome João Américo.
         — O senhor por aqui!
         — Sim, vim aqui apenas para lhe dizer que: “O amor é sábio, o ódio é tolo”. Isto, caro senhor Acácio, eu aprendi com um filósofo inglês — declarou João Américo e, depois, retirou-se. Não sem antes lhe desejar bom-dia.
         Aquilo mexeu ainda mais com os pensamentos do nosso herói. Acácio sentou-se sobre uma pedra, e ficou, então, a esgravatar o território das suas dolorosas dúvidas.
         Dandora afastou-se um pouco, fingindo interesse com a vista lá de cima do Vale do Rio Acaraú. Visto do alto, concluiu, o sertão não lhe parecia tão árido, as carnaubeiras e as oiticicas a formarem um cinturão verde no serpentear do rio, dando às ribeiras um quê de oásis. Com pouco, viu que Companheiro Acácio arrumou seus pertences, dando sinal de nova partida.
        — Não se foge do destino, mestre.
        — Nem muito menos, amigo Dandora, o destino seria maior do que o menor dos homens.
        De maleta na mão, Acácio levou a mão direita ao bolso da calça, retirando algo.
        — Pensei muito se deveria escrever esta carta. Ao escrevê-la, Dandora, restou-me outra dúvida: para quem, e quando, entregá-la? Deixo-a com você. Em Licânia, não conheci companheiro mais leal.
        — E quando eu devo ler esta sua carta? — interrogou-lhe Dandora, quando Acácio estendeu-a em sua direção.
        — Para ser sincero, não sei. Aqui está o desfecho do Fantasma de Licânia. Não o revelei aos licanienses porque...
        — Sim. Porque...
        — Porque simplesmente não tive coragem. A coragem me faltou por desconfiar que a continuidade do mistério causasse menos danos de que a revelação.
        Foi dizendo isto e abraçando fortemente o seu fiel assistente. Os olhos de Acácio tremiam como confusos ou como se vítimas de uma inquietação sem par. Pôs-se a descer, não sem antes enfiar a tal carta no bolso da camisa de Dandora. E, se foi, a caminho do vale.

        No sopé do serrote, Acácio, antes de meter o pé na poeira da estrada, resolveu correr os olhos pelas ruas de Licânia. Encantado, deu pelo voo confiante de um carcará no céu; seguiu-se uma legião de nomes a pulular na telúrica memória. “Raul, João Américo, Zé Aguiar, Paulo Bodô, Wagner de Dona Alzira, Gerardo Arcanjo, Dizim, Parnir, Zequinha Coletor, Maria Djanira, Martônio, Dederardo, Lourenço, Aristides, Gazumba, Chico da Maura, Dona Adamir, Eurico, Rita Gertrudes, Padre Araquento, Raimundo Sacristão, Dona Guidé, Ananias, Welshon, Lau, Wilson Gregório... Licânia! Para os de fora, vista, julgada e condenada, como uma província insignificante, desprezível, porém, para todos eles... um mundo.”

       Definitivamente, a sua última missão cobrava-lhe o exílio, além do amargo tributo da saudade.


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Leia também:

* Autorretrato de Clauder Arcanjo
* Clauder Arcanjo em Kaya - Revista de Atitudes Literárias
* 15 Perguntas para Clauder Arcanjo
* Clauder Arcanjo no Jornal de Poesia 
* Clauder Arcanjo e sua paródia à literatura policial
* Lápis nas veias, de Clauder Arcanjo


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Clauder Arcanjo 
é escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor das obras Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia, entre outras. Seus textos podem ser encontrados nos seguintes espaços: Jornal O MossoroenseSubstantivo PluralSegunda Opinião. Contato: clauderarcanjo@gmail.com.

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