Eduardo Coutinho |
por: Felipe Bragança,
Seis anos atrás, perdíamos um dos nossos mais
brilhantes e sensíveis cineastas. Em homenagem à data, recuperamos este texto
escrito pelo cineasta Felipe Bragança para o número 22 da revista Margem
Esquerda, a este que é amplamente considerado o mais
importante documentarista brasileiro. Para se aprofundar no tema, recomendamos
também o livro Sete faces de Eduardo Coutinho, escrito pelo jornalista Carlos Alberto
Mattos e publicado em 2019 pela Boitempo, pelo Itaú Cultural e pelo Instituto
Moreira Salles.
* * *
O espaço vazio e a palavra tentando organizá-lo. Como
escolher a palavra certa, o gesto certo e definidor? Eduardo resmungava muito
enquanto fazíamos a entrevista naquele simples e quase vazio escritório no
Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip), no centro do Rio de Janeiro.
Lembro-me de entrar na sala e ouvi-lo perguntar para mim: “Você existe mesmo?”.
A pergunta vinha porque Coutinho já tinha lido algumas coisas minhas sobre seus
filmes (nos velhos tempos em que eu escrevia em sites de cinema), mas nunca
tínhamos nos visto frente a frente. Faltava o encontro. O encontro. A fumaça de
cigarro que subia pela sala ia adensando a sensação de que Coutinho olhava o
mundo através dessa desencantada e alegre camada de dúvida, titubeio e
apreensão – a névoa alegre de toda pergunta. “Mas como fazer uma entrevista,
Felipe? Mas como saber se o que eu disse agora sou eu mesmo daqui a cinco
minutos, entende?”
A ideia de que nossa conversa pudesse ser publicada
futuramente em um livro assustava Coutinho. Imaginar que a palavra dita por
ele, deslocada de seu corpo, rosto e gestual, pudesse se tornar ditadora,
limitada e limitadora de ideias era algo que tirava aquele homem do conforto.
Eduardo não gostava de comentar filmes que não os dele, nem de definir objetos
fora de seu método. Achava que todo gesto de análise era insuficiente e se
dedicava às brechas, ao espaço misterioso entre os objetos – aquele espaço,
sim, tinha a existência nobre das coisas porosas que lhe enchiam os olhos de
brilho. E os olhos de Coutinho brilhavam falando de cinema. Por isso, a
conversa emergia como centro da dramaturgia documental de seus filmes. A
conversa tinha esse dom da fragilidade, da eternidade passageira, da
sobrevivência corajosa no tempo, e nunca o orgulho de um ditame vitorioso, pronto,
apaziguado. Aquele homem, tão aparentemente pragmático e metódico, procurava
milagres.
E nessa procura, Coutinho gostava de se resmungar, de se
questionar, de achar que tudo podia dar errado – e transpirava prazer nesse
limiar do risco. Filmar assombrado por essa dúvida. Filmar perplexo. O titubear
diante da vida como um gesto criador. Um gesto que nos desviava da ditadura dos
temas e recortes do cinema moderno (determinista e analítico em seu gesto
primordial), mas que também driblava a arapuca contemporânea da contemplação,
da inação diante dos dilemas do nosso tempo, da observação passiva que se
tornou um pobre sinônimo de um cinema “aberto” nos anos 1990 e começo dos 2000.
Observem bem: Coutinho nunca fez sequer um filme único plano
de contemplação. Seu cinema é abismado, desconfiado, ruminante, maravilhado. A
arte do cinema de Coutinho não é a arte que organiza o mundo para nosso
entendimento ou para nossa observação inerte, mas é a arte que amplia de forma
generosa nossas possibilidades de continuar investigando, buscando um pouco
mais, se mantendo fora do sossego da tese pronta, do certo e do errado, do
júbilo fácil da certeza – ideológica, moral, estética.
“Entende?” Coutinho terminava diversas de suas frases com
essa pergunta e um breve sorriso que costumava vir depois de alguns segundos de
um resmungo que não se tornava uma nova frase. Se movimentar no resmungo quase
risonho dessa névoa: esse era o cinema do Eduardo. Esse era um pouco o Coutinho
com quem convivi em entrevistas e nos corredores da VideoFilmes, onde tive a
sorte de montar um longa na sala ao lado em que ele criava seu secreto e
polêmico Um dia na vida. Um homem capaz de ir esvaziando tanto,
tanto e tanto nossas certezas e análises do real, que talvez, em retrospecto,
tenha sido o grande cineasta da utopia no Brasil de hoje. O grande cineasta a
nos dizer: o real é o que há, mas o real é selvagem!
Enquanto o cinema brasileiro se tornava pragmático, hipster e cool, contemplativo
e moralista na sua viciada busca por dispositivos para o olhar da vida
cotidiana e “explicar o país”, Coutinho desconfiava justamente dessa vida
apreendida como comum, e olhava de frente o risco da espetacularização do gesto
sem mistério, e da própria perda do mistério no cinema. O método em Coutinho
era a dúvida e o erro. Não era a fórmula e o acerto. Mas como então estou
falando em utopia se Coutinho falava apenas do que emanava das coisas mais concretas,
dos gestos mais diretos, das conversas mais cotidianas e inventadas com
simplicidade e calma? Como aquele homem resmunguento e obsessivo, que fumava
nos corredores da VideoFilmes fazendo o alarme de incêndio soar, podia estar
atento a algo não realizável e não tátil como o pensamento utópico?
Porque a utopia é, antes de tudo, uma pergunta.
Eduardo me ajudou a sonhar e a duvidar. Não porque falasse
do que estava fora do mundo, mas porque olhava o mundo com uma gentileza
cortante e perguntava: é isso mesmo o que queremos? É isso mesmo que estamos
fazendo? Somos esses o nós? A identidade de ontem nos basta hoje? Você tem
certeza de que é essa a história a me contar? Você tem certeza de que quer
caminhar naquela direção?
Deleuze falava em Spinoza com a ideia de um sol branco que
nos religaria, pelo banho de sua luz, ao estado das coisas como uma imanência
de possibilidades do porvir. A luz austera do cinema de Coutinho sobre mim me
jogava de volta ao mundo mais atento e mais gentil como se eu fizesse parte
dele justamente quanto mais eu me encontrava surpreendentemente perdido.
A forma como o cineasta Coutinho segurava a luz e o
som entre seus dedos e dentes nas perguntas que balbuciava – com medo até – em
seu cinema, ao invés de gerar angústia ou recolhimento do espírito, gerava uma
tranquila incerteza, um abismar-se capaz de olhar-se no espelho e perguntar:
você é mesmo só isso, mundo?
Hoje, tenho tranquilidade para dizer que sem esse cafuné que
os filmes de Coutinho fizeram em nossos olhos e ouvidos cansados de tanto
modernismo decadente e tanto niilismo importado dos Estados Unidos nos anos
1990, acho que não haveria cinema contemporâneo no Brasil. De O Céu de Suely (2006) a O que se move (2012), passando por tantos outros
gestos brilhantes, como Trabalhar cansa (2011)
e Girimunho (2011), os filmes de Eduardo caminham
ali nos corredores daquelas camadas que ele nos convidou a encontrar: olhar o
gesto humano no que ele tem de mais real e concreto e no que ele tem de mais
misterioso e fabular, nos mostrando como não dissociar as duas coisas.
Esse homem abertamente desconfiado e discretamente encantado
nos empurrou adiante, sim, a todos nós, mas não como um professor listando
tarefas (a ideia de uma “escola Eduardo Coutinho” de cinema é uma bobagem), mas
como um bom detetive a caminhar entre sombras, luzes, vultos e enigmas.
Coutinho não resolveu nenhum de nossos problemas. E muito menos os dele. Como
um detetive genioso e genial, nos entregou um dossiê incompleto e instigante,
nos entregou apenas ainda mais curiosidade.
E, em tempos de disputas políticas e simbólicas polarizadas,
arrogantes e simplistas no país, o gesto cinematográfico de Eduardo e as
lembranças de suas palavras são um ar precioso a se respirar. Um ar enevoado e
denso a nos perguntar, meio assim de lado, mas com os olhos firmes: isto que
tanto queremos, é mesmo o quê? É mesmo isso o que queremos?
Obrigado, Eduardo.
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