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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

MOVIMENTO NA NÉVOA (SOBRE EDUARDO COUTINHO)



Eduardo Coutinho



por: Felipe Bragança,


Seis anos atrás, perdíamos um dos nossos mais brilhantes e sensíveis cineastas. Em homenagem à data, recuperamos este texto escrito pelo cineasta Felipe Bragança para o número 22 da revista Margem Esquerdaa este que é amplamente considerado o mais importante documentarista brasileiro. Para se aprofundar no tema, recomendamos também o livro Sete faces de Eduardo Coutinho, escrito pelo jornalista Carlos Alberto Mattos e publicado em 2019 pela Boitempo, pelo Itaú Cultural e pelo Instituto Moreira Salles.

* * *

O espaço vazio e a palavra tentando organizá-lo. Como escolher a palavra certa, o gesto certo e definidor? Eduardo resmungava muito enquanto fazíamos a entrevista naquele simples e quase vazio escritório no Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip), no centro do Rio de Janeiro. Lembro-me de entrar na sala e ouvi-lo perguntar para mim: “Você existe mesmo?”. A pergunta vinha porque Coutinho já tinha lido algumas coisas minhas sobre seus filmes (nos velhos tempos em que eu escrevia em sites de cinema), mas nunca tínhamos nos visto frente a frente. Faltava o encontro. O encontro. A fumaça de cigarro que subia pela sala ia adensando a sensação de que Coutinho olhava o mundo através dessa desencantada e alegre camada de dúvida, titubeio e apreensão – a névoa alegre de toda pergunta. “Mas como fazer uma entrevista, Felipe? Mas como saber se o que eu disse agora sou eu mesmo daqui a cinco minutos, entende?”

A ideia de que nossa conversa pudesse ser publicada futuramente em um livro assustava Coutinho. Imaginar que a palavra dita por ele, deslocada de seu corpo, rosto e gestual, pudesse se tornar ditadora, limitada e limitadora de ideias era algo que tirava aquele homem do conforto. Eduardo não gostava de comentar filmes que não os dele, nem de definir objetos fora de seu método. Achava que todo gesto de análise era insuficiente e se dedicava às brechas, ao espaço misterioso entre os objetos – aquele espaço, sim, tinha a existência nobre das coisas porosas que lhe enchiam os olhos de brilho. E os olhos de Coutinho brilhavam falando de cinema. Por isso, a conversa emergia como centro da dramaturgia documental de seus filmes. A conversa tinha esse dom da fragilidade, da eternidade passageira, da sobrevivência corajosa no tempo, e nunca o orgulho de um ditame vitorioso, pronto, apaziguado. Aquele homem, tão aparentemente pragmático e metódico, procurava milagres.

E nessa procura, Coutinho gostava de se resmungar, de se questionar, de achar que tudo podia dar errado – e transpirava prazer nesse limiar do risco. Filmar assombrado por essa dúvida. Filmar perplexo. O titubear diante da vida como um gesto criador. Um gesto que nos desviava da ditadura dos temas e recortes do cinema moderno (determinista e analítico em seu gesto primordial), mas que também driblava a arapuca contemporânea da contemplação, da inação diante dos dilemas do nosso tempo, da observação passiva que se tornou um pobre sinônimo de um cinema “aberto” nos anos 1990 e começo dos 2000.

Observem bem: Coutinho nunca fez sequer um filme único plano de contemplação. Seu cinema é abismado, desconfiado, ruminante, maravilhado. A arte do cinema de Coutinho não é a arte que organiza o mundo para nosso entendimento ou para nossa observação inerte, mas é a arte que amplia de forma generosa nossas possibilidades de continuar investigando, buscando um pouco mais, se mantendo fora do sossego da tese pronta, do certo e do errado, do júbilo fácil da certeza – ideológica, moral, estética.