sábado, 22 de agosto de 2020

MEDO





Aquela estranha sensação,
às cinco da tarde,
a casa quase vazia,
você só,
um café na cozinha,
todos os sons brotando singularmente,
o vento nas cortinas,
um pássaro que,
de repente,
para de cantar,
a campainha muda,
também mudas as casas da vizinhança,
nem cachorro,
nem carteiro,
muito menos o caminhão de gás
ou o entregador de água mineral,
menos ainda polícia e sirene
ou o que o valha,
nada de nada,
só você e um sisudo relógio de parede.

Sem mais,
sem que ninguém ligue,
a TV ressoa, lá de cima,
do quarto último,
algum jingle com voz de criança.


│Autor: Webston Moura│


│Imagem: Sem Título, de Lee Bontecou


sábado, 15 de agosto de 2020

LIBERDADE


Fragment de Liberté - Jacques Hérold


Se apenas uma janela

onde paredes impedem,
liberdade,
ainda que pouca,
é alimento requerido.
Como a nesga de luz
clareando o calabouço
ou a pequena palavra
de um homem que se levanta.

Vai-se um barco,
só e devagar,
na água mansa.
     Não assusta,
     não conquista,
     não toma,
     não guarda,
     não deturpa
     − apenas atravessa.

Liberdade, ainda que só um fio:
a lua jorrando mansamente seu azul
sobre o carnaubal.


│Autor: Webston Moura│

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

ENFIM, O SOL


The Sun - Ravi Bedi



Levanto-me num dia comum,

vou ao quintal: o sol, sinto-o
e, de repente, penso ser este o
ente mais antigo que posso tocar.
Do que me vem à mão, se assim o posso,
o sol, que já aí se espraia desde há muito,
é um velho de velhice extrema,
com olhar silencioso e voraz
sobre o que a Vida lhe dispõe.

Que de mais estranho poderia
senão aperceber-me de minha
tão entranhada cegueira,
a ponto de, só hoje, nesta geral manhã,
ter me dado conta do sol,
este que pulveriza o trigo e o cão,
o vento e a solidão, o rio e a cidade?


Autor: Webston Moura│

CONFISSÃO QUASE PUERIL AO SOM DE ENTUSIASMADOS PARDAIS


Imagem retirada do Google Images



De vez que poemas são pássaros,

no dizer doutro poeta,
aquele de alma brincante,
dou-me a escrever,
ainda que iludido
de voos que pouco ou nada
causem ao mundo.

Seria pior não fazê-lo,
dada a tristeza de ser, 
então, calada voz
e mais ainda me reduzir a uma triste peça
deste engrenagem que é a vida
do jeito que e humanidade me legou.

Que me resta,
eu que gosto de música,
mas não de festa,
senão este pouco falar,
alento certo para caminho errante?


 │Autor: Webston Moura│

terça-feira, 11 de agosto de 2020

MINHA BELA DAMA



Panicale, Itália



Só falta a Audrey Hepburn,

de “My Fair Lady”,
surgir do outro lado.
Sei, isso não faz sentido,
mas foi o que me veio:
um vestido branco,
uma sombrinha de plumas,
um chapéu bonito.

(Ela sorri e me olha com inofensiva ironia).

E esta viela,
qual flor aberta,
humilde e sublime,
aonde vai dar?

Em aqui estar
neste apenas cheio de eternidade.


│Autor: Webston Moura│

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

ENQUANTO OUVIA DJAVAN



Untitled - Kenzo Okada




Ouvia Djavan, bebia, tinha o olhar perdido
e não parecia querer companhia.
Se chorava, não deu pra ver direito,
mas é possível quando se bebe e se escuta Djavan.
Mas, também, àquela hora, o sol se pondo,
tons laranjas no horizonte, brisa leve,
riso e melancolia em redor, como não?
Faltava o que? Um cão, só, a chegar ao pé, com fome?
Pois chegou. E ganhou um pouco de comida, alegrando-se.
É assim! Quando se sofre, bom é dar-se, ainda que para um cão.
Levantou-se, devagar, seguiu para o mar, os pés nus na areia.

Não voltou.


│Autor: Webston Moura│

ARCANO 22


O novo normal, diz-se,
depois de tantos mortos
e de todo o horror de se estar num país à deriva,
onde muitos querem beber nas praias,
como se fosse carnaval,
e outros, assustados,
querem apenas sobreviver.

E daí?!,
pergunta o arcano 22,
tocando lira à beira do abismo.


 │Autor: Webston Moura│