terça-feira, 29 de setembro de 2020

BASTANTE






Basta
- no arremedo improcedente
  das ausências me apresento
  à luta: ponto

sou o novo soldado
engajado em guerras
vespertinas: compro

repentinamente a hora cheia
avisa sobre o corpo: velho

a mecânica do mundo estraçalha o sono
o aviso na porta indica a saída

basto em mim mesmo
que essa luta não é minha.

 (Pedro Du Bois, inédito) 


│Autor: Pedro Du Bois

│Do blog do autor: http://pedrodubois.blogspot.com

OUTONO





Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor...
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

(16 setembro 1966)



│ MIGUEL TORGA, in DIÁRIO X (Coimbra, 1968), in DIÁRIO IX-XI (Dom Quixote, 2011)
│Fotografia ©JNS_Vinha_Douro_Vinhateiro

O LUGAR DA CASA






Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.


│EUGÉNIO DE ANDRADE, in O SAL DA LÍNGUA, PRECEDIDO DE TRINTA POEMAS (APE, 2001), in POESIA (Modo de Ler, 2011)
│Óleo s/ tela: About time, ©Eva Ryn Johannissen (Suécia) 

SEM OUTRO INTUÍTO





Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
 
│ LUÍS MIGUEL NAVA, in VULCÃO (Quetzal Editores, 1996); in POESIA (Assírio & Alvim, 2020)
│Fonte: Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen 
 Fotografia ©Adriano Basto

sábado, 22 de agosto de 2020

MEDO





Aquela estranha sensação,
às cinco da tarde,
a casa quase vazia,
você só,
um café na cozinha,
todos os sons brotando singularmente,
o vento nas cortinas,
um pássaro que,
de repente,
para de cantar,
a campainha muda,
também mudas as casas da vizinhança,
nem cachorro,
nem carteiro,
muito menos o caminhão de gás
ou o entregador de água mineral,
menos ainda polícia e sirene
ou o que o valha,
nada de nada,
só você e um sisudo relógio de parede.

Sem mais,
sem que ninguém ligue,
a TV ressoa, lá de cima,
do quarto último,
algum jingle com voz de criança.


│Autor: Webston Moura│


│Imagem: Sem Título, de Lee Bontecou


sábado, 15 de agosto de 2020

LIBERDADE


Fragment de Liberté - Jacques Hérold


Se apenas uma janela

onde paredes impedem,
liberdade,
ainda que pouca,
é alimento requerido.
Como a nesga de luz
clareando o calabouço
ou a pequena palavra
de um homem que se levanta.

Vai-se um barco,
só e devagar,
na água mansa.
     Não assusta,
     não conquista,
     não toma,
     não guarda,
     não deturpa
     − apenas atravessa.

Liberdade, ainda que só um fio:
a lua jorrando mansamente seu azul
sobre o carnaubal.


│Autor: Webston Moura│

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

ENFIM, O SOL


The Sun - Ravi Bedi



Levanto-me num dia comum,

vou ao quintal: o sol, sinto-o
e, de repente, penso ser este o
ente mais antigo que posso tocar.
Do que me vem à mão, se assim o posso,
o sol, que já aí se espraia desde há muito,
é um velho de velhice extrema,
com olhar silencioso e voraz
sobre o que a Vida lhe dispõe.

Que de mais estranho poderia
senão aperceber-me de minha
tão entranhada cegueira,
a ponto de, só hoje, nesta geral manhã,
ter me dado conta do sol,
este que pulveriza o trigo e o cão,
o vento e a solidão, o rio e a cidade?


Autor: Webston Moura│