domingo, 6 de fevereiro de 2022

"O MAINSTREAM ESTÁ MORTO"



Guilherme Arantes




A nossa televisão mudou dramaticamente ao longo do tempo.

Eu ligo a TV hoje em dia e percebo o grau a que se chegou com o passar de tantas décadas, especialmente no Brasil.

Rodo e rodo o "dial" e me deparo com um deserto, uma paleta inacreditável de canais inúteis para o meu gosto.

Na Espanha eu também sofria esse tédio, e eu me abrigava nos canais provínciais, em concertos e programas musicais do "baixo clero de audiência", porque a profusão de "realities" e outros caca-niqueis também na Europa é 100% enfadonha. . .

Os personagens desse veículo, salvo honrosas exceções, (sempre há exceções para tudo) são caricaturas histriônicas, a vida parece que se tornou um desenho animado sem a menor graça.
Muitos admiradores da gente vêm nas redes nos cobrar mais presença, nos pedem para "voltarmos" à antiga notoriedade, e vêm cobrar insistentemente "da mídia" maior espaço e reconhecimento para a gente, e eu juro que não consigo compreender o que essas cobranças querem dizer, por mais carinhosas e bem intencionadas que sejam. Sei que este assunto é chover no molhado, todo mundo sabe o colapso da "cultura de massa" ...

As "redes sociais" também não escapam da mesmice, com tecnologias mais e mais sofisticadas, em altas definições para nulidades culturais...

Houve um tempo, que já vai longe, em que a TV estava operando de forma incipiente como indústria cultural, era um novo e desconhecido veículo de massas, e pelo preço do aparelho, me lembro bem, eu era criança, aquela jeringonça frequentava as casas de família mais abastadas...

Lembro que a bossa-nova foi um dos primeiros movimentos que fluíram em branco e preto, nas telas que ainda exibiam o frame-padrão do índio (quem lembra ?)

A seguir, a TV herdaria do rádio as novelas e os musicais de auditório.
As novelas se beneficiariam do fértil Teatro Brasileiro, de autores, diretores e atores fantásticos, aderindo à indústria cultural com grande carga de qualidade.
Deu no que deu, a teledramaturgia brasileira foi a melhor do mundo !

A primeira geração musical 100% nativa da chegada da TV no Brasil foi a geração da Elis, Jair Rodrigues, Roberto Carlos , Chico, Gil, Caetano, e a TV passaria a um protagonismo culto com o envolvimento de jornalistas culturais oriundos do colunismo da Última Hora, do JB, dos grandes jornais formadores de opinião.

Esse ambiente daquela época (anos 60) é absolutamente peculiar e irrecriável...
Até mesmo nos círculos intelectuais, acadêmicos, a Televisão gozava do prestígio de teses, de debates, de fundamentações teóricas.

Já nos anos 70, no pós-68, a indústria cultural ganharia novos impulsos comerciais com a consolidação das redes nacionais, e a nossa geração pode usufruir de uma proliferação dos espaços populares voltados à música.

Penso mesmo que fomos privilegiados, porque vivemos nos anos 80 numa plataforma híbrida, entre cultura e comércio de massas, porém ainda "analógica", anterior à revolução digital. A revolução digital apunhalou a industria cultural em suas práticas convencionais. A partir das possibilidades da digitalização, vejam bem, a cópia se tornou o novo fundamento num mundo sampleado.

( Hoje, tudo aquilo da era analógica parece um passado irrecuperável, eternamente congelado nos HDs da "Matrix")
A cultura de massa dos anos 90 e 2000 seguiu bovinamente o processo tecnológico da clonagem, democratizando os meios, inventando e beneficiando cada vez mais os personagens que logram mais audiência e retorno imediatista.
Chegamos então a este mar de personagens caricatos que povoam todos os espaços "comercialmente viáveis".
A "Matrix" venceu.
Orwell.

O espaço é exíguo, hoje, senão inexistente, para o surgimento de novas gerações de ouro, despojadas, naturais e sem ouro-nos-pendurucalhos, como foram aquelas que fizeram os tempos gloriosos da cultura popular legítima, espontânea, transformadora e duradoura.

Hoje, tudo é 100% visual, volátil, e até mesmo músicas de um minuto estão na mira das grandes corporações.
Que mundo é este ?

O que é isto que nos é oferecido na grade da TV aberta, e, pior, nas grades das TVs a cabo ? Uma lixeira ?
Tempos sombrios de uma maçaroca cultural nos grandes veículos.
Vida que segue, "pelas beiradas",pelos espaços alternativos.
O Mainstream está morto.

* Texto de Guilherme Arantes, o cantor, em seu perfil no Facebook:









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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

[PARA SER GRANDE, SÊ INTEIRO]







Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

14-2-1933

Fotografia de © michal karcz

ODES DE RICARDO REIS. FERNANDO PESSOA. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). (1ª publ. in Presença, nº 37. Coimbra: Fev. 1933).





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domingo, 30 de janeiro de 2022

BALANÇO










Uma noite, entre chegada e partida,
matámos a solidão que nos separava.
Chovia; e para cá dos vidros era a vida
que escorria, húmida, e nos tapava.
Outra noite, ouvi-te respirar
como se o teu sono me acolhesse:
maré que inundaria a baixa mar
até que o mundo desaparecesse.
Tantas noites, já, por nós repartidas
e tantas que ficaram por viver.
Conto esses dias, de tardes perdidas,
e ouço neles teu coração bater.



NUNO JÚDICE, in O ESTADO DOS CAMPOS (P. D. Quixote, 2003)
* Imagem: Acrílico sobre tela: Pink Passion, de Megan Ducanson



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sábado, 8 de janeiro de 2022

NUVENS



Clouds - Gerhard Richter



Põe-se o céu no diálogo do talvez.
Insinua, desiste, volta a insinuar.
Passam-se as horas, os ventos correm.
No enquanto tudo é só nuvens.
E já basta.
A natureza é tudo, a natureza é sempre.



|Autor: Webston Moura|





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quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

PÃO



Bread - Horia Bernea


Tal a porta, sono, abraço,
tudo que acolhe, ajuda, protege.
Tudo o que desembaraça, a mão
que lava a louça, limpa o chão,
busca a ordem e constrói o amanhã,
sonhando paz: pão.


|Autor: Webston Moura|






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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

DENTRO DE



Up Within - Frederick Hammersley



Interiormente à entranha,
à dobra obscura, oculta,
donde se supõe segredo
ou cuidado, talvez medo.

O que se carrega sob
a mão fechada,
ao bolso,
envolto num lenço,
sob o sigilo de um selo antigo,
a promessa jurada a sangue.

Ou apenas um blefe.



|Autor: Webston Moura|




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GATO E PÁSSARO



Cat and Bird - Paul Klee




Equilíbrio e atenção
entre predador e presa.
A beleza e o terror
no mesmo ato.
O salto, o voo,
o êxito ou a queda.

Sabem os sobreviventes de fugir,
mas mais: sabem de perseverar.




|Autor: Webston Moura|







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